O texto que apresento como enredo é fruto da escuta. Ele nasce da condição de ouvinte da sabedoria ancestral daqueles que guardam nas palavras que falam uma espécie de escrita que dá conta da memória. A narrativa carnavalesca que agora apresento se respalda na possibilidade de acesso a uma biblioteca de bocas que guardam um tipo de livro raro.
Aquilo que escrevo a seguir, ouvi de ekedes e babalorixás. De mogbás e ialorixás. O que agora se mostra com contorno carnavalesco não é exatamente aquilo que um só deles disse. O que escrevo é a soma de tudo o que foi dito, incluindo o que um não disse, mas que o outro acrescentou. Nas culturas marcadas pela oralidade, vale o dito popular: “Quem conta um conto aumenta um ponto.”
Nas linhas que virão, apresento-lhes aquilo que ouvi, acrescentando “um ponto” que é fruto da minha imaginação carnavalesca para o mito ioruba que narra a visita de Oxalá – senhor de Ifón – à Xangô. Com isso, conto-lhes as peripécias de Exu e o desfecho da saga incluindo os ritos que ainda hoje – em terras brasileiras – são realizados em memória da jornada que transformo em material artístico e desfile.
SINOPSE DO ENREDO ÓMI TÚTÚ AO OLÚFON – ÁGUA FRESCA PARA O SENHOR DE IFÓN.
Estamos em continente africano. Mais precisamente, em IFÓN. O que se ouve é o som dos elefantes que parecem abrir caminho para o cortejo. Todos – bicho e gente – exibem marcas de EFUM e são embelezados com pratas e marfins. A cor branca que veste a maioria dos corpos se derrama. De frente, em seu trono, como escudo, reina Oxalá. Ele é o senhor de Ifón, orixá FUNFUN e pai da criação.
Sua imagem é um monumento erguido em chumbo incrustado de pedras preciosas e CAURIN catado nas águas do Atlântico. Os tambores tocam em seu louvor e o chão está coberto com folhas frescas. O ALÁ esticado por seus súditos faz sombra ao corpo do rei. O OPAXORÔ, majestosamente erguido pela mão do rei, dá sombra e abriga seus súditos.
Em certa ocasião, em um tempo que não carece precisão, Oxalá deseja visitar outro OBÁ. Um fraterno companheiro, quarto ALAFIN do trono de Oyó; o fogo que arde vivo no casco de um AJAPÁ que rasteja tal qual brasa incandescente: Xangô. Como é costumeiro e conveniente aos soberanos, antes de seu deslocamento, Oxalá busca saber de forma antecipada informações sobre a jornada que estava disposto a realizar, consultando o BABALAÔ de Ifón e a tábua sagrada (o OPOM-IFÁ).
Jogo feito e búzios caídos. O IEROSSUM marca um ODÚ que antecipa desgraça e ruína. O sacerdote tenta – em vão – convencer o soberano a desistir da viagem. Irredutível, ele diz que irá. Diante da negativa e da insistência de contrariar seu odú, é então orientado de forma imperativa: “como bagagem indispensável para a viagem, leve três mudas de roupas brancas (AṢO FUN FUN) e sabão da costa (ÒSÉ DUDU). No percurso, para afastar a morte, mantenha-se em silêncio absoluto e, em nenhuma hipótese, não se negue a realizar qualquer coisa que lhe for solicitada.
Antes da partida, para reduzir o dano que se mostra real, ofereça à Exu – aquele que anda na frente e é o senhor dos caminhos – um agrado traduzido em generosa oferta”.
A orientação dada pelo sacerdote não foi aceita. Logo ele, rei coroado da corte funfun, criatura modelada pelas mãos de OLORUM, o dono dos olhos que tudo vê e pai da criação do homem, precisaria agradar Exu como forma de obter menor dano? A proposta do babalaô era inadmissível.
Comprometendo-se apenas com as roupas brancas, o sabão da Costa, o silêncio e a resignação de tudo atender, partiu rumo a Oyó sem o EBÓ de Exu. No primeiro passo da jornada, por certo, ele desconhecia o porvir. Exu, todavia, era sabedor. Sua boca aberta à espera do agrado – qualquer que fosse – estava vazia. E sua boca vazia dizia que algo estava em falta. A falta era uma pendência. A pendência, uma dívida. E a dívida seria cobrada onde ele é soberano: no caminho.
De branco, Oxalá dá o primeiro passo de seu trajeto. O primeiro passo é o início do caminho. O caminho, como se sabe, tinha dono. A partir de então, é Exu quem comanda. Ele é a sonora gargalhada disposta a romper o silêncio. A travessura da travessia. O fiscal que ri enquanto cobra a quem deve.
O fato é que Exu pôs-se no caminho de Oxalá como um guarda que cobra o pedágio da cancela fechada. Irônico e galhofeiro, em sua primeira aparição, colocou-se diante do Senhor de Ifón com um fardo de carvão. Pediu-lhe auxílio para carregá-lo e, sem que o velho rei pudesse negar qualquer solicitação, viu Oxalá pôr o fardo sobre as costas. Foi quando a gargalhada de Exu rompeu o silêncio, enquanto “o dono da boca que tudo come” fazia com que o conteúdo do fardo se derramasse sobre o rei.
Tingido de preto, Oxalá se dirigiu ao rio mais próximo. Banhou-se com ÒSÉ DUDU e vestiu nova roupa branca – a primeira das três que levou – para seguir a jornada. O fato é que Exu repetiu o feito de encardir o traje do soberano pedindo-lhe auxílio para carregar fardos por mais duas vezes.
Depois da traquinagem com o carvão, derramou sobre Oxalá um tonel de vinho de palma. Na sequência, fez o mesmo ao lambuzar as vestes do senhor de Ifón com a vermelhidão oleosa do azeite de dendê. Em ambas as ocasiões, Oxalá banhou-se com ÒSÉ DUDU e realizou a troca das roupas até não mais haver a possibilidade de trocar-se.
Seguiu seu caminho sem poder mais impedir que os últimos dias de travessia não causassem dano aos seus trajes soberanos. O trajeto porvir inevitavelmente macularia suas roupas brancas. Cansado da longa caminhada e das demandas recorrentes, adormeceu. Exu, por sua vez, seguia espreitando e, durante o sono de Oxalá, pregou-lhe sua última travessura: amarrou-lhe um fardo de sal sobre as costas dando-lhe aparência corcunda.
Ao acordar, o velho rei pôs-se a caminhar. Àquela altura, ele já se aproximava de seu destino: o palácio do Alafin. Bastava atravessar o pasto para que, antes do anoitecer, pudesse ser recebido como rei, comer como rei e desfrutar do conforto destinado aos reis. No exato momento em que o portão que dá acesso à morada de Xangô pôde ser visto à distância, Oxalá avista também o cavalo branco que ele mesmo havia ofertado ao senhor daquele território como um presente símbolo de apreço e amizade entre os dois soberanos.
Desviou-se por alguns instantes do trajeto e aproximou-se do animal com a intenção de reconduzi-lo para junto do amigo. O que ele não previa era que aquele animal estava dado como roubado e o furto do cavalo do rei, artigo muito estimado por Xangô, era o motivo da fúria do Obá durante os últimos dias.
Junto ao cavalo do rei e sujo em função das demandas da jornada, foi visto pelos guardas da cavalaria do reino. Estes, sem supor de quem se tratava, acusaram aquele homem de roubo. Como prometido ao babalaô antes de deixar Ifón, Oxalá manteve o silêncio absoluto. Preso, foi levado para Oyó. Não como rei, mas sim como ladrão. Não houve festa para recepcionar o respeitado soberano. Tampouco pôde aproximar-se de Xangô. Sujo e encardido pelas demandas do caminho, foi levado para o cárcere. Lá, permaneceu por sete anos.
No período encarcerado, talvez como punição contra a injustiça que acometia aquele inocente, a ruína se espalhou pelas terras de Xangô como um sauro enfurecido que cuspia miséria, morte e seca. Tamanha decadência sem aparente razão fez com que Xangô buscasse um babalaô que, após consultar o oráculo, sentencia que há um homem preso injustamente no reino do Obá famoso pelo apreço à justiça.
Sabedor do que ocorria, Xangô parte em busca de encontrar o tal homem com a intenção de corrigir a arbitrariedade. Para seu espanto, encontra Oxalá, (rei e amigo fraterno) aprisionado e quase irreconhecível. Para a remissão, ordena que todos os seus súditos se dirijam para as nascentes mais límpidas em busca de água fresca para o banho que traria alívio ao senhor de Ifón e, por consequência, reestabeleceria o vigor da vida coletiva.
Enquanto o líquido dos vasilhames era derramado, Oxalá recuperava o caráter imaculado de seu traje funfun em meio às águas frescas como gotas de orvalho. Águas de remissão. Águas pra apartar qualquer dor. Água de rio, fonte e cachoeira. Água que ninguém pode amarrar.
Este gesto – das águas que foram derramadas para que Oxalá pudesse se banhar – jamais foi esquecido e o pedido de que aquilo fosse feito em memória do grande orixá também não. Séculos se passaram e essas águas ainda seguem sendo derramadas sobre o orixá. Hoje, Oyó ainda transborda nas quartinhas que guardam as águas que nascem em terras brasileiras. Oxalá agora é um OTÁ. Um axé de pedra guardado no IBÁ e, anualmente, banhado com veneração pelos filhos de santo.
Em seu louvor, em procissão, por três fins de semana, todos vestem AṢO FUNFUN (roupas brancas) e suas águas frescas (ÓMI TÚTÚ) são recolhidas antes que o primeiro raio de sol possa tocá-las. Quando a noite cai, as EKEDES auxiliam os orixás que vem dançar. IABÁS e OBORÓS estão na terra. O ALÁ é estendido enquanto o soberano se manifesta no corpo do OMO ORIXÁ que enverga. As mãos dos ALABÊS dão vida ao couro que vibra enquanto as IABASSÊS carregam o ACAÇÁ cozido e o EBÔ de milho branco para o salão. No ILÊ, qualquer ABIÃ sabe que naquelas cumbucas não se bole nem com sal nem com dendê.
O OTÁ está de volta ao ILÊ ORIXÁ. Limpo e banhado de axé. Os pratos de louça branca circundam o assentamento. Nele, os IGBINS, as moedas, os marfins, a penca com as pombas de latão e os OBIS. No centro, escondendo o AWO (o segredo e o mistério), a coroa de prata. Um ADÊ (coroa) de IRIN (metal) onde o CAURIN (búzio) vale tal qual adorno precioso.
Enredo, pesquisa, roteiro, desenvolvimento e texto: LEANDRO VIEIRA.