Por Gustavo Lima e Will Ferreira
Uma das grandes tradições do samba paulistano envolve uma data em especial: 23 de abril. Dia de São Jorge e de Ogum, é nesta efeméride que a Acadêmicos do Tatuapé, tradicionalmente, faz uma feijoada em homenagem ao Santo Guerreiro e, de quebra, lança o enredo para o carnaval seguinte. Nesta terça-feira, a Azul e Branco da Zona Leste renovou o hábito e lançou a público a temática para o ano de 2025. Desenvolvido pelo carnavalesco Wagner Santos, a primeira palavra já define todo o desenvolvimento do desfile – que é complementada por uma célebre frase do ativista Martin Luther King. Dessa maneira, a agremiação apresentará o tema “Justiça – A Injustiça Num Lugar Qualquer é Uma Ameaça à Justiça em Todo Lugar”.
Vale destacar a grande presença de público no evento, que tinha fila dobrando a esquina das ruas Melo Peixoto e Antônio de Barros para entrada na quadra – e, sobretudo, para garantir um prato gratuito de feijoada e bebida. Também era possível comprar quitutes como acarajé e doces como brigadeiro e paçoca, além de bebidas.
Primeiros passos
Principal responsável pelo desenvolvimento do enredo, Wagner comenta como a proposta chegou até ele: “Foi uma proposta já criada pela diretoria. O presidente Erivelto Coelho foi a pessoa que escolheu o enredo. Eu realmente fiquei muito satisfeito porque é diferente, tem uma proposta visual maravilhosa e dá condição para o carnavalesco trabalhar. Estou muito feliz, me sinto agradecido e estou tendo a oportunidade de desenvolver esse enredo fantástico. Vou, inclusive, poder satirizar em alguns momentos, brincar um pouco com a história… isso vale muito para o meu currículo profissional. É uma grande oportunidade, agradeço muito à Tatuapé, ao Departamento Cultural que desenvolveu todo o trabalho de pesquisa – tenho eles como grandes parceiros, eles me ajudam em um dos momentos mais difíceis do carnaval – a final, quando é a hora de desenvolver a pasta que é entregue ao jurado… nessa hora, o carnavalesco não tem mais cabeça para desenvolver nada”, cita, destacando outra área bastante importante para uma agremiação.
Erivelto Coelho, um dos presidentes da Tatuapé, aprofunda ainda mais o quanto a temática é um desejo antigo da agremiação: “Eu tinha comentado sobre esse enredo há uns cinco ou seis anos, ele estava na gaveta desde então. Como nós tínhamos outras opções e algumas cidades nos procuraram nesse tempo, deixamos de lado. Quando acabou o último carnaval, nós tínhamos três opções e, rapidamente, o Departamento Cultural, juntamente com a diretoria e o carnavalesco, optaram por ‘Justiça'”.
Setor forte
A importância do Departamento Cultura. não apenas para a escolha do enredo, mas para toda a Acadêmicos do Tatuapé, ficou ainda mais evidente na fala de outras duas figuras bastante importantes para a agremiação. Um deles é Eduardo Santos, um dos outros nomes que compõem a presidência da instituição: “O enredo nasceu de uma conversa com o nosso Departamento Cultural. Precisávamos de algumas opções, já que negociamos alguns enredos por algum tempo, e queríamos uma alternativa nossa, autoral, caso a gente não conseguisse finalizar as negociações que estavam em andamento. Começamos a desenvolver com mais profundidade, entender e desenhar melhor, quando percebemos que as negociações não iriam para frente. Os presidentes, o Departamento Cultural e o Wagner se reuniram e acreditamos muito no enredo, na história que contaremos. Temos um grande enredo na mão”, relembrou.
Por fim, Celsinho Mody, intérprete da Azul e Branco, também citou o segmento como referência na agremiação: “Eu estou muito feliz com a reação da comunidade, que gostou muito do enredo. Todo mundo saiu gritando, pulando e tudo mais. Conheci o enredo junto com a comunidade e estou aprendendo sobre Justiça agora, acredito que o carnaval, mais uma vez, cumpriu sua missão de trazer cultura e informação. O Wagner Santos é um mestre, um gênio, e a escola também tem um Departamento Cultural muito gabaritadas. Vamos trabalhar para levar a Justiça ao campeonato do carnaval de 2025”, pontuou.
Aprofundamento
Determinados pontos relativos ao enredo foram esmiuçados por profissionais importantes da Tatuapé. Uma visão mais geral sobre a temática em si foi dada por Erivelto: “É um enredo ousado. Fazia tempo que a gente não executava um tema desse porte… acho que o último que fizemos algo parecido foi em 2019, com ‘Bravos Guerreiros’ – mas, mesmo assim, acho que ele não tinha um apelo tão forte, pontual e pertinente. Conseguimos acertar a mão e, agora, é rezar para ter um grande samba. Quem estava presente viu que o tema foi bem aceito, mas não esperávamos algo na intensidade que foi. Acho que toda a comunidade e todo o povo brasileiro vão se sentir representados com esse enredo tão atual e necessário”, pontuou.
Sobre o tão falado desenvolvimento do enredo, Wagner pontuou que a ordem em que cada momento destacado no desfile aconteceu será determinante para nortear a temática: “O enredo vai ser contado de uma forma cronológica. Nós vamos fazer uma viagem no tempo através da história da Justiça. Contaremos a história da Justiça desde os tempos em que não existiam leis, as pessoas se matavam umas às outras. Depois surgiu o Código de Hamurabi e as demais leis foram surgindo. Mas vamos brincar um pouco, satirizar, dar pitadas de críticas. A lei não é perfeita, ela tem falhas e procura ver privilégios próprios. Contaremos isso de uma forma engraçada e interessante, mas sem criticar a Justiça – um mundo sem Justiça não existe, e ela é importante na nossa vida. As leis brasileiras possuem muitas falhas, e favorecem muito quem tem mais dinheiro. É a questão da balança: vale o quanto pesa. Isso será mostrado no nosso enredo de uma forma artística e cultural”, destacou, já delimitando alguns temas presentes.
O carnavalesco também falou sobre quesitos estéticos – fazendo uma crítica construtiva às demais agremiações: “Iniciar a parte visual de um enredo é sempre um desafio, porque eu sempre vejo um enredo como uma proposta para levar um visual diferente para as pessoas que estão assistindo ao espetáculo. Eu não concordo com a proposta de, em todo ano, levar uma proposta visual igual. Eu e a Tatuapé somos muito criticados por todo ano criarmos um conceito diferente… já as outras treze agremiações apresentam, todo ano, o mesmo conceito visual. Só mudam as cores, os elementos… mas o conceito visual é sempre o mesmo. Carnaval é cenografia, é arte, é cultura, é oportunidade de levar outros materiais e elementos, propostas alternativas. Existe muita coisa para ser feita e explorada, e o carnaval te dá essa oportunidade. E essa oportunidade eu abraço com unhas e dentes”, aproveitou.
Receptividade
Aproveitando para dar mais algumas dicas sobre o enredo para os leitores do CARNAVALESCO, Eduardo destacou que gostou do que viu na quadra quando a temática foi anunciada: “Não tenho dúvida que a comunidade vai receber o enredo muito bem, já vimos hoje que ele tem uma adesão e uma receptividade muito grandes. Faremos o melhor desenvolvimento possível para ele, e não acreditamos em enredos bons ou ruins, tudo depende do encaminhamento que você dá para uma temática. Tenho certeza que o desfile será maravilhoso. Contaremos como a Justiça surgiu, do mais completo caos até os dois de hoje, os vários momentos da história em que leis foram implantadas dos pontos jurídicos e religiosos – e tem um capítulo importante dessa história que é a falta de Justiça, que falaremos de tudo que não concordamos. Há essa dupla função no enredo. Vamos colocar a aversão que temos aos preconceitos raciais, sociais… falaremos de xenofobia, homofobia, o que acontece com os povos originários, com mulheres, gays… tudo está dentro da história que contaremos”, contou.
Wagner foi mais enfático, destacando que a pauta é uma questão nacional: “A Tatuapé vai se encontrar nesse enredo porque o Brasil, hoje em dia, clama por Justiça. Nós clamaremos por Justiça, queremos um país justo e igual para todos”, elocubrou.
Retorno do concurso de samba-enredo
Pouco antes de revelar o enredo, Eduardo Santos aproveitou para trazer uma novidade para 2025: o retorno do processo para escolha de samba-enredo – ou seja, sem encomendas para o ano seguinte. Ele mesmo, em entrevista ao CARNAVALESCO, destacou que, mesmo com tal volta, toda a situação possui particularidades.
“Volta o concurso dentro dos moldes que implantamos desde 2012. Continuaremos nisso: sem eliminatória aberta, já que não acreditamos nesse modelo. Faremos a abertura da nossa sinopse para quem quiser concorrer, entregando a gravação. A partir daí, fazemos uma pré-seleção, elegendo no máximo quatro sambas que estão totalmente dentro do que queremos. Abrimos, então, para os nossos departamentos e comunidade para que eles nos ajudem a escolher. Fizemos isso sempre desde o ano passado. Em 2023, fizemos uma encomenda: nosso samba é muito valente, bom e bacana, nos ajudou demais. Mas, em 2024, optamos em voltar para o processo anterior para abrirmos e deixar que as pessoas participem. Acreditamos que teremos sambas de muita qualidade para trabalharmos”, explicou.
Sempre positivo, Celsinho também, de antemão, acredita que boas canções serão selecionadas: “O formato do concurso de samba-enredo é exatamente o mesmo que era feito até o carnaval de 2023. O que muda é que, agora, tem um prêmio de R$ 20 mil para os compositores. Vou ter o prazer de ouvir muitas obras, já que muitos compositores gostam de inscrever sambas aqui. Tenho certeza que virão muitas obras de boa qualidade e tenho certeza que a Tatuapé vai escolher o melhor samba para o próximo carnaval”, finalizou.