Passados os desfiles das escolas de samba, não é rara a defesa de que determinadas fantasias ou alegorias “mereciam ir para um museu”. Pois a exposição “Desvairar 22”, aberta no Sesc Pinheiros, em São Paulo, no último dia 27 de agosto, acolheu a arte carnavalesca em diferentes dimensões: além de fotografias de icônicos desfiles concebidos por Fernando Pinto e Joãosinho Trinta, duas obras assinadas pelos carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora compõem a mostra, cuja curadoria coube a Eduardo Sterzi, Marta Mestre e Veronica Stigger. Uma delas é a instalação “Exunautas”, conjunto de sete esculturas que ocupa a varanda do espaço expográfico.

Foto: Divulgação

Haddad explica a configuração da obra. “Trata-se de uma transposição das sete esculturas de ‘Exus catadores de universos’, que giravam na parte frontal da última alegoria do desfile da Grande Rio de 2022, para um espaço expositivo dentro de um edifício, que é, obviamente, um universo muito diferente do espaço ritual da Sapucaí. Numa exposição, essas peças adquirem outros sentidos, o que é desafiador e enriquecedor para o nosso fazer artístico. Tivemos de criar uma estrutura de ferro para a sustentação das peças, que estão expostas a céu aberto, faça chuva ou faça sol. É bom saber que Exu venceu e está viajando por aí, ocupando outros espaços. Exu é movimento e não vai parar nunca”, diz o artista.

Os sete “Exunautas” encerraram a apresentação vitoriosa da escola de samba de Duque de Caxias, que levou para o sambódromo carioca o enredo “Fala, Majeté! Sete chaves de Exu”, sobre as diferentes potências da mais instigante divindade das religiões de matrizes africanas. O carro alegórico “Fala, Majeté!”, onde as peças originalmente giravam, evocava as provocações de Estamira, catadora de materiais recicláveis do antigo lixão de Jardim Gramacho, situado na cidade-sede da escola. Na visão do enredo, que foi assinado pela dupla de artistas e pelo historiador e antropólogo Vinícius Natal, Estamira é uma filósofa contemporânea, alguém que buscou conexões com a energia de Exu através de um telefone velho – algo mostrado no documentário homônimo, de Marcos Prado. As peças, nesse sentido, acionam reflexões acerca da ideia de “lixo” e se conectam aos debates que envolvem a luta contra o racismo religioso. É o que defende Bora.

“Os ‘Exunautas’ querem provocar reflexões sobre o que é o ‘lixo’, as ruínas de um padrão de sociedade que, entre outras coisas, exclui e rejeita a diversidade e o que considera ‘louco’ ou ‘perigoso’, como Exu, divindade múltipla e potente que passou por um processo de demonização, dentro do violento sistema colonial. O mais interessante é que esse nome, ‘Exunautas’, surgiu espontaneamente, no barracão da Grande Rio, durante o processo de decoração das peças. Esse processo, aliás, foi algo fascinante, uma vez que cada uma das sete esculturas foi adereçada por um estudante da Escola de Belas Artes da UFRJ, utilizando, para isso, de sobras de materiais dos outros carros alegóricos e de outros processos carnavalescos – coisas que costumeiramente iriam para o lixo. Também foram utilizados materiais recicláveis oriundos de cooperativas de Jardim Gramacho, graças a uma parceria que a Grande Rio estabeleceu com Tião Santos, líder da associação de catadores de Gramacho. São muitas camadas e muitos cruzamentos”, afirma Bora.

Além dos ‘Exunautas’, Bora e Haddad participam da exposição com a obra “Saravá, meu pai Ramsés!”, o croqui da fantasia utilizada pela bateria da Grande Rio, no desfile de 2020, em homenagem ao pai de santo Joãozinho da Goméia. Para o curador assistente Renato Menezes, tais obras contribuem para o debate central da exposição.

“Partimos do pressuposto de que no inconsciente da dita modernidade está uma tentativa de decifrar enigmas de um passado mítico, movimento retrospectivo que levou os modernistas de 22 a se interessarem pelo antigo Egito e pelas cosmogonias afro-ameríndias. É fascinante perceber como esse imaginário adquire potência máxima nos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, que são uma expressão da modernidade não centralizada em São Paulo. A fantasia de faraó utilizada por Joãozinho da Goméia em um baile carnavalesco e reinterpretada por Bora e Haddad no desfile da Grande Rio está diretamente relacionada aos ‘Exunautas’. Trata-se da busca por um passado que também é futuro, projeções banhadas de sonhos e purpurina”, finaliza Menezes.

“Desvairar 22” é parte da série de eventos “Diversos 22” e está aberta ao público até o dia 15 de janeiro de 2023.

Ficha técnica da instalação: Gabriel Haddad e Leonardo Bora – “Exunautas”. Colaboração (adereçaria): Amanda Veiga, Joana D’Arc Prósperi, Jovanna Souza, Nícolas Gonçalves, Rafael Torres, Sophia Chueke, Theo Neves. Escultura: William Mansur. Pintura: Gilmar Moreira e Rafael Vieira. Estrutura de ferro: Zeli Lanoa e Ageu Lanoa.

Serviço:
“Desvairar 22” – exposição com curadoria de Eduardo Sterzi, Marta Mestre e Veronica Stigger. Assistência de curadoria de Renato Menezes.
Local: Sesc Pinheiros, São Paulo – SP.
Entrada gratuita.
Data e horário: de 27/08 a 15/01. Terça a Domingo. Terça a sábado, das 10h30 às 21h. Domingos e feriados, das 10h30 às 18h.

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