Neste 20 de novembro celebra-se o Dia da Consciência Negra. O feriado não é nacional, mas é adotado em muitas cidades brasileiras. Para entender o que representa a importância desse dia a equipe do CARNAVALESCO traz um levantamento com os sambas fundamentais sobre a negritude que já passaram pela avenida. Como toda lista há sempre um toque de gosto pessoal influenciando a definição dos sambas. Por isso cabe esclarecer: o critério adotado foi através de sambas-enredo que versam sobre negritude, figuras negras enaltecidas em desfiles e mensagens contra o preconceito. Os chamados enredo de temática “afro” ficaram fora da abordagem. O levantamento também buscou sambas que se apresentaram no principal grupo dos desfiles.
Abaixo elencamos dez obras consideradas as mais fundamentais da história para se compreender a negritude e a histórica luta dos negros por valorização e o fim do racismo. Ao fim da lista trazemos outros sambas que acabaram ficando de fora da listagem principal devido aos critérios escolhidos.
Os sambas fundamentais da negritude
1) Salgueiro – 1960: Quilombo dos Palmares
Compositores: Noel Rosa de Oliveira, Anescar e Walter Moreira
A obra que abre a lista foi uma espécie de abertura das temáticas onde o negro deixa de ser um reles funcionário de barracão, e se torna o autêntico rei na folia, tornando-se o narrador dos discursos de enredos. Fernando Pamplona estreava no Salgueiro e decidia contar a história do mais importante dos Quilombos de resistência à escravidão. O resultado do desfile é até hoje polêmico. A apuração das notas do julgamento do Supercampeonato aconteceu no dia 03 de março. A informação de que, de acordo com o regulamento, todas as escolas, com exceção do Acadêmicos do Salgueiro, perderiam pontos por terem atrasado o início de seus desfiles gerou uma enorme briga, envolvendo sambistas, funcionários do Departamento de Turismo e a polícia presente. Acalmados os ânimos, resolveu-se apurar somente os pontos positivos, deixando a questão dos pontos negativos para uma ocasião posterior. Dessa forma, a Portela foi declarada campeã, lugar que caberia ao Salgueiro, caso o regulamento fosse aplicado. No dia seguinte, em nova reunião, as cinco primeiras colocadas decidiram em consenso anular o julgamento e dividir entre elas, em partes iguais, a premiação do concurso.
2) Salgueiro – 1963: Xica da Silva
Compositores: Noel Rosa de Oliveira e Anescarzinho
O primeiro campeonato de fato e de direito do Salgueiro veio com um histórico carnaval. A vermelha e branca trouxe para a avenida a história, hoje mundialmente conhecida e que virou até novela, da escrava que se torna sinhá ao ser comprada por um contratador que por ela se apaixona. O samba é um dos mais marcantes da história do carnaval e já foi regravado por diversos intérpretes. Na ocasião a primeira-dama do Salgueiro, Isabel Valença, incorporou de maneira inesquecível o personagem tema do enredo. E a Academia do Samba entrou de vez para o hall das gigantes do carnaval.
3) Salgueiro – 1964: Chico Rei
Compositores: Geraldo Babão, Djalma Sabiá e Binha
Já reconhecida como uma grande agremiação, o Salgueiro comoveu de novo em 1964. O samba e o enredo jogavam luz novamente a um até então completamente desconhecido personagem da história não contada do Brasil. Chico Rei, o escravo que escondia ouro nos cabelos para um dia comprar a própria alforria. Ele se torna rei e liberta todo o povo negro. A obra de Geraldo Babão, Djalma Sabiá e Binha deu ao Salgueiro o vice-campeonato naquele ano.
4) Unidos de Lucas – 1968: História do negro no Brasil ou Sublime pergaminho
Compositores: Zeca Melodia, Nilton Russo e Carlinhos Madrugada
Em 1968 a até então desconhecida Unidos de Lucas (escola nascida da junção da Unidos da CApela – uma das campeãs de 1960 – a a Aprendizes de Lucas) tirou um surpreendente 5º lugar. Mas o que ficou marcado na história de verdade foi o samba-enredo, até hoje ensinado em colégios e citados em teses que pretendem contar o período da escravidão. Como não se emocionar ao ouvir os versos “E um negro jornalista, de joelhos beijou a sua mão, uma voz na varanda do Paço ecoou: meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão”.
5) Portela – 1972: Ilu Ayê
Compositores: Cabana e Norival Reis
Historicamente a Portela não costuma enaltecer a negritude em seus carnavais. Mas para o carnaval de 1972 a direção da escola incumbiu a um departamento cultural sob a coordenação de Hiram Araújo o desenvolvimento do enredo. “Ilu ayê” foi o primeiro trabalho realizado por esse departamento, e contou com a participação do compositor Antônio Candeia Filho, grande defensor das tradições africanas no Brasil, que auxiliou Hiram no desenvolvimento do trabalho. O samba foi defendido na avenida por ninguém menos que Clara Nunes. A cantora gravou a canção. É uma das obras mais exaltadas da história da Portela.
6) Beija-Flor – 1983: A grande constelação das estrelas negras
Compositores: Neguinho da Beija-Flor e Nêgo
O quarto campeonato da Beija-Flor de Nilópolis foi embalado por um dos sambas preferidos do intérprete Neguinho da Beija-Flor. Autor da obra ao lado do irmão Nêgo, o samba enaltecia grandes figuras da música, do esporte e da cultura que eram negras. Certamente um dos sambas fundamentais que versam sobre a negritude. Inesquecíveis os versos que exaltam a nilopolitana Pinah, a passista que ganhou notoriedade ao sambar com o príncipe Charlie quando este visitou o Brasil em 1978. “Pinah êêê Pinah, a Cinderela negra que ao príncipe encantou, no carnaval com o seu esplendor”. Um samba para sempre.
7) Vila Isabel – 1988: Kizomba, festa da raça
Compositores: Rodolpho, Jonas e Luiz Carlos da Vila
Para muita gente um dos maiores desfiles de todos os tempos. Que é o maior samba da história da Unidos de Vila Isabel pouca gente ousa discordar. Kizomba, a festa da raça, traz uma ode completa à negritude, mesclando a presença de figuras fundamentais na história de luta do movimento negro e que ao mesmo tepo estariam reunidas para uma grande festa na avenida. Reunião que fez o jornalista Sérgio Cabral (o pai) a escrever essas palavras em sua coluna para o Jornal O Dia na quarta-feira de cinzas de 1988, horas antes da abertura dos envelopes na apuração: “Ninguém poderá apagar a emoção que o desfile da Vila Isabel me causou. Foi uma apresentação revolucionária. Para um conservador, foi um desfile subversivo”.
8) Mangueira – 1988: 100 anos de liberdade, realidade ou ilusão?
Compositores: Hélio Turco, Jurandir e Alvinho
1988 jamais será esquecido pelos amantes do gênero samba-enredo. Ao celebrar os 100 anos da abolição da escravatura os poetas produziram obras memoráveis e eternas. A Mangueira tem uma para chamar de sua. O multi-campeão Hélio Turco, o consagrado Jurandir e o então jovem Alvinho (ele mesmo, o ex-presidente) produziram uma das mais definitivas obras sobre negritude da história do carnaval. São muitas as passagens que definem esse samba como uma verdadeira oração de luta contra o racismo e o preconceito, eternizada na voz de Jamelão. A composição aborda a retórica da pergunta, daquelas que incomodam e fazem pensar até hoje, “Será … que já raiou a liberdade ou se foi tudo ilusão?”. Será?
9) Viradouro – 1998: Orfeu, o negro do Carnaval
Compositores: Gilberto Gomes, Mocotó, Gustavo, P.C. Portugal, Dadinho
Para contar a lúdica história de Orfeu e Eurídice, uma adaptação brasileira passada com a realidade da favela e do carnaval, os compositores da então campeã do carnaval criaram uma das mais tocantes melodias e letras sobre negritude em todos os tempos. Celebrada até hoje, 20 anos depois, como um dos maiores sambas da história da escola. E da trágica morte de Orfeu e Eurídice (como tantas ocorrem diariamente em favelas e guetos pelo Brasil) tira-se a inspiração e a poesia: “O Grêmio do Morro venceu, e o samba do negro Orfeu tem um retorno triunfal”.
10) Paraíso do Tuiuti – 2018: Meu Deus! Meu Deus! Está extinta a escravidão?
Compositores: Cláudio Russo, Moacyr Luz, Jurandir, Zezé e Aníbal
Uma lista como essa jamais se fecha. Mas é bem recente a última referência de um samba que traz ao mesmo tempo uma mensagem de crítica social baseada no orgulho negro. O desfile deste ano do Paraíso do Tuiuti foi uma encantaria em um momento onde a raça negra vive sob ataque, constante. Nas favelas, no asfalto, na falta de políticas públicas. E a mensagem pode ser resumida através de um dos muitos versos dessa obra que já pode ser considerada eterna: “Meu Deus! Meu Deus! Se eu chorar não leve a mal, pela luz do candeeiro, liberte o cativeiro social”.
Playlist: outros sambas históricos que enaltecem a negritude
Mangueira – 1962: Casa grande e senzala
Salgueiro – 1971: Festa para um rei negro
União da Ilha – 1974: Lendas e festas das Yabás
Unidos da Tijuca – 1982: Lima Barreto, mulato, pobre, mas livre
Salgueiro – 1989: Templo negro em tempo de consciência negra
Salgueiro – 1992: O negro que virou ouro nas terras do Salgueiro
Viradouro – 1994: Tereza de Benguela, uma rainha negra no Pantanal
Unidos da Tijuca – 1996: Ganga-Zumbi, Expressão de Uma Raça
União da Ilha – 1998: Fatumbi, A Ilha de Todos os Santos
Caprichosos de Pilares – 1998: Negra origem, Negro Pelé, Negra Bené
Mangueira – 2000: Dom Obá II, Rei dos esfarrapados, Príncipe do povo
Tradição – 2000: Liberdade! Sou negro, raça e Tradição
Tuiuti – 2001: Um mouro no quilombo. Isto a história registra!
Beija-Flor – 2001: A saga de Agotime, Maria mineira Naê
Unidos da Tijuca – 2003: Agudás: os que levaram a África no coração e trouxeram para o coração da África, o Brasil!
Caprichosos de Pilares – 2003: Zumbi, rei de Palmares e herói do Brasil. A história que não foi contada
Beija-Flor – 2007: Áfricas – Do berço real à corte brasiliana
Salgueiro – 2007: Candaces
Porto da Pedra – 2007: Preto e branco a cores
Vila Isabel – 2012: Você semba lá… que eu sambo cá! O canto livre de Angola
Imperatriz – 2015: Axé-Nkenda – Um ritual de liberdade – E que a voz da liberdade seja sempre a nossa voz
Viradouro – 2015: Nas veias do Brasil, é a Viradouro em um dia de graça