Às 23h de uma quinta-feira, na encruzilhada das ruas Maxwell e Uruguai, um grande personagem do carnaval carioca atravessou a linha de chegada de mais um ensaio. Seu nome é Carlos Borges – o Carlinhos Salgueiro, assim como o Brasil e o mundo conhecem o coreógrafo e diretor artístico da vermelho e branco do Andaraí. Ao fim do ensaio de rua, ele seguiu a pé até a quadra da escola, localizada na rua Silva Teles, sendo calorosamente saudado pelos integrantes da agremiação. Cada passo dessa caminhada era um reflexo de sua trajetória: dos becos do Morro do Andaraí aos palcos do mundo. Carlinhos trocou abraços, pousou para fotos e relembrou momentos de sua trajetória de 25 anos no Salgueiro.
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Conhecido pela irreverência e seriedade de seu trabalho, Carlinhos Salgueiro abriu as portas para que os passistas das gerações mais novas tivessem mais liberdade em seu samba no pé. No percurso que fizemos juntos até a quadra do Salgueiro, Carlinhos falou ao CARNAVALESCO sobre os desafios de ser um artista preto, gay e favelado na sua trajetória, o reconhecimento profissional internacional e os sonhos que ainda deseja realizar no carnaval.
Abertura de portas para a diversidade
“O Salgueiro deu a oportunidade para um cara gay, preto e favelado romper barreiras. Se hoje temos passistas da diversidade, passistas não-binários, é porque eu abri a porta para essa galera. As pessoas só viam cabrochas e malandros. Eu rompi a barreira do preconceito”, declarou o artista, relembrando o conselho que recebeu no início da carreira de sua madrinha Aldione Sena: “Seja você!”.

Se as encruzilhadas da vida reservam encontros imprevisíveis e cheios de sorte, em nossa caminhada tivemos o privilégio de cruzar com outros dois personagens fundamentais na trajetória de Carlinhos Salgueiro. O primeiro deles é Clair Basílio, diretor de bateria da vermelho e branco, que foi quem trouxe o jovem coreógrafo do Morro do Andaraí para a escola de samba. Na época, Clair estava disputando samba na Alegria da Passarela, a primeira escola mirim do Salgueiro, e convidou Carlinhos e seu grupo de dança para fazer parte da torcida. “Como o irmão dele era meu amigo, chamei o Carlinhos para participar. Só que a mãe dele não deixava, então fui até a casa deles pedir permissão”, contou o diretor de bateria, mais conhecido como Mané Perigoso.
Carlinhos reconhece que foi Clair quem conseguiu amolecer o coração de sua mãe para permitir que ele dançasse na escola mirim. “Eu era louco pra dançar na escola de samba, e minha mãe já sabia que eu era uma menina; ela não deixava. Ele foi lá em casa, porque minha mãe era muito rígida. Fui com meu grupo de dança para torcer. O samba dele perdeu na segunda levada, e quem ganhou foi o Dudu Nobre, que me zoa até hoje”, relembra Carlinhos, que estreou aos 11 anos na escola mirim. Esse foi o primeiro passo de uma longa caminhada que o levaria a se tornar um ícone do carnaval.
Outro personagem que abriu caminhos para o artista foi Sidclei dos Santos. Na entrada da quadra, o mestre-sala e o diretor artístico do Salgueiro se encontraram e relembraram momentos do início da amizade. Carlinhos contou que, no início da carreira, desmontava os figurinos de Sidclei e aproveitava as pedrarias das roupas do amigo para fazer os seus trajes. “Eu cheguei aqui, e o Sidclei me apadrinhou. No início, eu não fazia parte do grupo da diretoria, e ele me contava quando tinha alguma apresentação e mandava eu levar uma roupa”, contou Carlinhos, que chegou a dançar no programa de televisão Xuxa Park por exigência do mestre-sala: “Não estava nada escrito lá, e ele falou: ‘Se ele não dançar, eu não danço’. Só ia dançar ele e as meninas. Foi graças ao Sidclei que me tornei o primeiro passista da escola”, revelou Carlinhos, que concretizou com Sidclei uma grande parceria e amizade. “A gente se trata como irmãos”, afirmou.
Salgueiro, uma escola de oportunidades
Enquanto seguíamos em direção à quadra, Carlinhos refletiu sobre sua trajetória artística e profissional no mundo do samba, destacando o papel transformador que a escola de samba teve em sua vida. Para ele, o Salgueiro é uma “escola de oportunidades”. Foi por meio da agremiação que o artista se profissionalizou, conquistou reconhecimento internacional e viajou para 34 países, levando o seu samba no pé para o mundo. Sua dedicação e talento o levaram a ser condecorado como rei na Austrália e na Inglaterra, além de ser nomeado embaixador do carnaval na Alemanha. “Eu nunca imaginei que um cara da comunidade fosse ter a oportunidade de ir para fora com a bandeira do samba”, declarou orgulhoso de cada passo dado em sua trajetória rumo à expansão do legado do samba.
Quem atesta o prestígio internacional do trabalho do coreógrafo é o bailarino Thálisson Montanari. Recém-chegado da Inglaterra, especialmente para a pré-temporada do Salgueiro, ele conta que Carlinhos é referência lá fora. “O nome da ala de passistas do Salgueiro é referência em Londres”, confirma o gaúcho, que começou a sambar no projeto do artista. “O Carlinhos provoca que a gente saia da nossa zona de conforto. Não é somente o passista sambar, não é isso. É interpretação, é show. Ele trata a gente como artistas”, afirma Thálisson.
Ala Maculelê e o desfile de corpo fechado
A ala Maculelê é uma parte fundamental da caminhada de Carlinhos Salgueiro. Além de desfilar no Salgueiro, a ala também é uma companhia que realiza apresentações fora do carnaval. Alguns de seus integrantes, inclusive, atuam em comissões de frente de outras escolas. Demerson D’Alvaro, o Exu da comissão de frente da Grande Rio em 2020, já integrou a ala. Essa troca de experiências e talentos reforça a importância da ala Maculelê como um celeiro de artistas que transcendem as fronteiras das agremiações.
Para o desfile de 2025, Carlinhos adianta que a ala Maculelê será um dos grandes destaques do Salgueiro, com um elemento cênico que promete emocionar o público. “Vamos mostrar a diversidade que o Morro do Salgueiro tem. Eu estou muito feliz “, declara o coreógrafo, que ressalta o trabalho intenso de ensaios, já em andamento há três meses. “Tem um elemento cênico muito grande. É realmente um espetáculo”, completa, deixando claro que o público pode esperar uma apresentação grandiosa e “babadeira”.
Samba em transformação
Completando 25 anos no Salgueiro, Carlinhos também avalia a caminhada do samba. Adaptando-se às novas tendências culturais e tecnológicas, o tradicional samba no pé tem passado por transformações significativas ao longo dos últimos anos. Recentemente, a apropriação do samba para as “dancinhas” do TikTok tem gerado debates entre os amantes do gênero. O coreógrafo expressou sua visão sobre o fenômeno: “A minha linha não é essa. Por mais que eu goste de coreografia, eu sou oriundo do samba antigo, do samba de quadril, do samba de malandragem. Eu fico feliz que os meus não foram nessa linha, mas eu não vou criticar quem se sente bem em fazer isso”.
Carlinhos Salgueiro destaca que a vivacidade do samba implica em transformações: “O samba tem uma vivência, passa por transformações. Hoje as pessoas criticam, de repente pode ser a nova tendência. Não é a minha”. Ele também lembrou das críticas que enfrentou no começo de sua própria trajetória, afirmando: “Como eu fui muito criticado, não posso agora criticar porque eu sei o que eu passei”.
Sonho de Carlinhos: um intercâmbio cultural de samba no pé
Ao final da caminhada, chegamos ao palco da quadra do Salgueiro, onde Carlinhos posou para fotos com sua habitual alegria e irreverência. De lá de cima, ele olha para frente e compartilha um desejo que ainda gostaria de realizar em sua trajetória como artista do carnaval: um projeto de intercâmbio com as alas de passistas das escolas do Grupo de Acesso. “Eu viajo o mundo, sou remunerado por isso, mas queria ir para Belford Roxo, Campo Grande, Caxias… Gostaria de transmitir meu conhecimento para as escolas do acesso”, revelou o coreógrafo, que mencionou a falta de recursos financeiros como um obstáculo para concretizar o projeto. “É muito bonito eu fazer isso lá fora. Mas algo me motiva a fazer isso aqui também. O que falta é ter essa oportunidade”, afirmou. Ele ainda contou que o presidente da Liesa, Gabriel David, prometeu uma conversa para entender melhor a proposta. Esse é mais um passo que ele deseja dar em sua jornada.
Carlinhos do Carnaval
“Eu não sou mais Carlinhos do Salgueiro, eu sou Carlinhos do Carnaval”, declarou ele. “O Salgueiro entende isso e fica com receio. Eu não me vejo só como Carlinhos do Salgueiro. Eu vejo que muita gente aprendeu comigo, mesmo que indiretamente, mesmo sem reconhecer, alguém pegou alguma coisa”, afirma.
Ao final da nossa caminhada, Carlinhos deixa claro que sua trajetória não se limita ao Salgueiro, mas se estende a todo o carnaval, como um legado de resistência, diversidade e amor ao samba. Cada passo que ele dá é uma inspiração para quem vem depois, mostrando que o samba no pé é uma jornada sem fim.