Por Lucas Santos
Diante de um cenário de dificuldades que vem assombrando a praticamente todas as
escolas de samba do Grupo de Acesso, ainda sem receber subvenção da Prefeitura do Rio
há menos de um mês para o carnaval, a Vizinha Faladeira dribla os obstáculos com
criatividade e empenho de seus componentes. Ao chegar ao barracão da escola, onde
era a antiga quadra da comunidade, que fica próximo à Cidade do Samba, a reportagem do CARNAVALESCO encontrou o próprio carnavalesco da agremiação, Jean Rodrigues, e o presidente David dos Santos botando a “mão na massa” e trabalhando em uma das alegorias que a azul, vermelha e branca do Santo Cristo vai levar para a Intendente Magalhães no dia 5 de março, terça-feira de carnaval.
“Estou com as mãos sujas de tintas. Eu sou pintor de arte. Antes de ser carnavalesco era pintor de arte. Aqui se descobriu essa força. Sou carnavalesco, funcionário, pintor, carpinteiro, faço o desenvolvimento do enredo, desenho. Se não for dessa forma, as escolas do Grupo B pra baixo e até da Série A, inclusive, não tem carnaval. Tem que ser dessa forma. Mas é na dificuldade que se descobre o potencial de cada componente, que se reage. A única saída é essa para conseguir botar o carnaval”, explica Jean Rodrigues.
Apesar da crise, a escola está otimista pelo trabalho e enredo desenvolvidos. A ideia de contar o Nordeste de uma forma realista veio do próprio carnavalesco enquanto ele lia artigos sobre a criação da antiga Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), criada em 1959, durante o governo Juscelino Kubitschek, a partir da percepção de que com o processo de industrialização do país, crescia a diferença social e econômica entre a região e o Centro-Sul do Brasil.
Jean, em sua pesquisa, mergulhou fundo no conhecimento de projetos desenvolvidos pelo poder público que não deram certo no Nordeste como a transposição do rio São Francisco, que até hoje segue incompleta. ‘De Catulo a Lampião, Bem vindo a terra do cão’ vai mostrar a região de uma forma que, segundo Jean, é pouco abordada no carnaval, em seu aspecto dramático e sofrido.
“A gente falar do nordeste com bonequinho e sanfoninha, não. É o Nordeste como ele
é na verdade. Lendo sobre a extinta Sudene, vi toda a tragédia que aconteceu com aquele povo. O enredo ‘De Catulo a Lampião, Bem vindo a terra do cão’ quer dizer exatamente isso. É a terra do Cão. É um tema dramático, adaptado para o carnaval”, garante.
Jean tomou como fio condutor o poema dramático “Morte e Vida Severina”, de João
Cabral de Melo Neto, que narra a dura trajetória de Severino, uma migrante sertanejo
(retirante) em busca de uma vida mais favorável na capital pernambucana. Como na
poesia e também na música de Chico Buarque de mesmo nome, em homenagem a
obra, a Vizinha vai mostrar em seu desfile este sofrimento de uma forma dramatizada
e carnavalizada, mas apresentando ao mesmo tempo a força do povo nordestino para
transformar labuta e tristeza em arte, música, artesanato.
“O nosso grande trunfo é o conjunto da obra que vai ser apresentado na Avenida. Mostrar esse nordeste sofrido através da sua cultura com obras como “O Auto da Compadecida”, “A Face do Cão”, representando aqueles que enriquecem através da indústria da seca. O ponto alto é mostrar que o mal ainda está no nordeste como no caso dos grandes coronéis mas de uma forma dramatizada e carnavalizada”, aposta o carnavalesco.
Ainda que o desfile tenha a intenção de sair um pouco da versão tradicional do Nordeste habitualmente mostrada na Avenida, alguns personagens famosos da região e da literatura deste lugar vão ser representados no desfile da Vizinha Faladeira. Na religiosidade, por exemplo, Padre Cícero será figura central para simbolizar a fé do nordestino em meio a todas as dificuldades enfrentadas no dia a dia. O humor picante do Nordeste e seus comediantes, como por exemplo, Chico Anysio, serão lembrados no último setor que vai apresentar a criatividade deste povo como fuga daquela realidade tão sofrida exposta no primeiro setor.
Reaproveitamento de materiais e tecnologia de Parintins são trunfos da escola
Com a parte de confecção de fantasias já finalizada, e com um bom número já entregue a componentes, a Vizinha Faladeira prioriza agora o trabalho nos dois carros alegóricos que vai levar ao desfile na terça-feira de carnaval. O presidente da agremiação, David dos Santos, adiantou para o CARNAVALESCO que o carro abre-alas virá com esculturas tendo movimento a partir de tecnologia de Parintins. O carnavalesco Jean Rodrigues confirmou que além do movimento, outras surpresas foram preparadas para o primeiro carro que vai representar a “Face do Cão”, ou seja, o mal no Nordeste, mas não quis adiantar quais truques vai usar.
Para driblar as dificuldades, tanto nas fantasias quanto nos carros, a escola tem utilizado materiais alternativos como palhas, restos de tecidos, e cacos de isopor que sobraram e foram retirados da Cidade do Samba. Jean Rodrigues acredita que a crise econômica foi combustível para aflorar o senso de criatividade e a sua visão de artista.
“Os materiais que vamos usar conseguem dar plástica ao trabalho. A plástica é uma execução do que você tem a sua volta, no seu entorno. Se nós tivéssemos hoje dinheiro a vontade, talvez, não saísse nem tão bom. Porque é na plástica que você formata o espetáculo, a sua alegoria. E quando você não tem materiais a disposição, por incrível que pareça, aparecem coisas fantásticas, aparecem coisas maravilhosas”, assegura.
A Vizinha Faladeira será a sétima escola a desfilar na terça-feira de carnaval na Intendente Magalhães.
Entenda o desfile
A Vizinha vai levar para a Intendente em 2019 cerca de 500 componentes, e duas
alegorias. O carnavalesco da escola ajudou um pouco a elucidar como está dividido o
desfile.
Setor 1 – O Nordeste Dramático
O primeiro setor vai mostrar o sofrimento que o nordestino tem passado em decorrência dos fracassos do Poder Público para resolver seus sofrimentos. Neste
setor será apresentada a seca, a influência dos grandes coronéis, citando que até hoje este tipo de poder continua agindo na Região, e a obra “Morte e Vida Severina” de
João Cabral de Melo Neto.
Setor 2 – A religiosidade do Nordeste
O segundo setor vai mostrar a ligação entre o nordestino e a religião que é fortalecida
como resultado do sofrimento apresentado no primeiro setor. Nesta parte do desfile, a
escola vai trazer algumas figuras importantes da Região como o Padre Cícero e a obra
“O Auto da Compadecida” de Ariano Suassuna. No segundo carro, Nossa Senhora, a
compadecida, personagem central da obra de Suassuna, virá em um andor
representando a fé do povo nordestino.
Setor 3 – A criatividade do nordestino
Jean vai encerrar o desfile mostrando que apesar de tantas dificuldades o povo da
Região Nordeste em geral transforma suas dores em música, poesia, artesanato,
humor e lendas. Nesta parte do desfile será lembrado algumas obras como o “Coronel
e o Lobisomem” de José Cândido de Carvalho e o trabalhos realizados em literatura de cordel, além dos grandes humoristas do Nordeste e músicas como “Bicho de Sete Cabeças” de Geraldo Azevedo.