A Estácio de Sá se prepara para entregar mais um bom desfile no Carnaval 2025. Isso porque ela fez uma ótima apresentação no ano passado, que lhe rendeu o terceiro lugar na Série Ouro. Agora, a vermelha e branca está com sede pela vitória, e para isso, aposta em um enredo que possibilita uma infinidade criativa dentro de um assunto já bastante abordado na avenida. De autoria do carnavalesco Marcus Paulo, “O Leão Se Engerou em Encantado Amazônico” fala sobre os povos originários do Brasil sob um novo olhar, explorando suas crenças e cultura através da história dos encantados amazônicos.
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O CARNAVALESCO esteve no barracão da escola para ver como essa narrativa está sendo materializada, e batemos um papo com Marcus Paulo, que nos contou como foi o caminho e desafios encontrados para chegar na escolha deste tema.
“A escola me deu essa missão de falar da Amazônia e contar a história dos povos originários, mas eu não queria, de verdade. Já não falaram muito do Brasil? A gente já vai para a Sapucaí esperando esse tema. Alguma escola vai fazer. Fiquei muito incomodado, porque há bem pouco tempo o Salgueiro fez um enredo muito bonito sobre isso, e a Porto da Pedra também, com o Mauro Quintaes, que é meu amigo, que trouxe o olhar de um estrangeiro que nunca foi para a Amazônia, mas tinha aquela visão de fora, do europeu pesquisador. Eu fui pesquisar muito contrariado, já inclinado a fazer outro enredo que gosto muito, que já está me acompanhando há muito tempo e ainda não consegui executar. Foi quando eu esbarrei com essa história dos encantados amazônicos, aí fiquei muito curioso para saber quem eram e porque a gente não ouve falar sobre eles aqui no Sudeste. Quem são? O que eles representam? O que está por trás desse arquétipo? O que significa isso? Eu fiquei muito curioso, e aí fui, mesmo que despretensiosamente, pesquisar mais sobre eles. Até porque eu gostei da palavra ‘encantados’. Acabei descobrindo que o que chega aqui para a gente como folclore, a Caipora, o Ganhabora, o Curupira… São encantados amazônicos, e para alguns povos originários, principalmente para o povo Tembé (indígenas), é como se fosse uma religião. Eles acreditam que esses encantados são a própria natureza que se gera para se autoproteger e para proteger o povo da mata (quem trabalha e vive da mata). E esses encantados me encantaram! Aí, eu falei: está aí o meu enredo! Eu vou falar de povos originários, mas desse aspecto. Vou falar da Amazônia, mas trazendo um olhar totalmente diferente do que já foi dito na Marquês de Sapucaí. Estamos contando a história dos encantados, como eles representam cada elemento, como defendem a floresta e como representam a cultura amazônica”.
Riqueza do foclore engerada na Avenida
O carnaval é uma festa popular que faz parte das manifestações culturais do nosso país, logo, tem essa ligação direta com o folclore brasileiro, que é rico e diversificado, e também conta com influências africanas, indígenas e europeias. Sabendo disso, Marcus aproveitou para extrair o que há de mais fantástico nessa junção, e usou a criatividade para transformar isso em arte.
“O que me encantou nesse enredo é que eu pude viajar muito, porque essa história dos encantados é muito lúdica, muito rica de imagem, o que me fez carnavalizar muito minhas fantasias. Eu vim de um enredo um pouco mais documental do ano passado, que contava as histórias de duas meninas pretas escravizadas. Sempre defendo a minha sinopse dizendo que é uma história baseada em fatos reais, mas também carnavalizada e adaptada artisticamente. Eu sempre coloco ali o meu toque, mas esse ano eu pude fazer isso muito mais, porque para os povos originários e para quem vive na mata, a realidade se confunde com a fantasia. O que para a gente é fantasia, para eles é real. A partir daí, ficou um enredo muito bacana. O desfile está muito colorido e me permitiu fazer fantasias lindas”.
Poder da originalidade para se destacar entre as demais
Todo ano, cada escola de samba recebe o desafio de trazer algo jamais visto para o Sambódromo. Essa tarefa é difícil, mas ela não parece ter sido um empecilho para Marcus, que em vez disso, considera sua narrativa como o grande trunfo da escola neste ano. Ele ainda destaca a importância de um povo contar suas próprias vivências e narrativas, explicando como os pesquisadores devem dar voz aos contadores de estória para fazer um trabalho bem feito.
“Estou trazendo cultura do povo da mata que ainda não foi contada dessa forma, com eles contando a história deles, apresentando o que são esses encantados, o que eles representam, como eles protegem e concebem cada elemento da floresta, demonstrando como eles são a força da própria natureza que se gera e se transforma em alguma coisa pra se autoproteger. Então, esse é o diferencial dentro de um tema muito explorado na Marquês de Sapucaí. Seja falando de Amazônia ou de povos originários, eu consegui pincelar um aspecto que não é tão explorado”.
Medo do desconhecido gera ignorância
O carnaval também cumpre o papel de levar informação para a sociedade. Através de uma jornada mística feita por seu leão mascote, o desfile da Estácio irá desmistificar os preconceitos criados em torno das lendas e mitos da Floresta Amazônica.
“Esse ano, por exemplo, temos o enredo da Vila Isabel, que traz o Curupira como uma assombração. E como o Curupira se transformou em uma assombração? Foi quando o homem branco chegou para explorar e ouviu falar nesse ser dos povos originários, aí ele imediatamente o demonizou, assim como ele demonizou as religiões africanas. Como se tratava de um ser que causava medo a ele, que era dito por ali que se ele entrasse na mata para explorar, seria castigado, ele o colocou como um demônio. E, para o povo da mata, o Curupira é a maior força da natureza. Além dele ter esse nome, ele tem vários outros nomes. Ele se transforma em várias coisas, como rio, água, fogo, galho, árvore, cobra … E é dessa forma que a gente estará o retratando na Marquês de Sapucaí”, explica o artista.
Mas, afinal, o que é um engerado?
“Essa palavra eu descobri conversando com pesquisadores e folcloristas locais, porque nos meus trabalhos eu quero sempre trazer a visão de dentro, não do pesquisador de fora. Então assim eu soube o que é o engeramento, que além do incorporar, é se transformar, se mutar em alguma outra coisa. Uma árvore se transforma em animal, animal se transforma em água, que se transforma em rio, que se transforma em gente, ou pode ser metade rio, metade gente. Esse engeramento será o meu grande trunfo na avenida, porque as pessoas não verão um indígena como indígena, ou um animal como um animal, verão sempre tudo engerado, transformado. Inclusive, os protetores que perderam a vida protegendo a mata, como Dorothy Stang, Dom Phillips, Chico Mendes e vários outros. Eles retornam no nosso enredo, mas não na forma que eles tinham em vida, porque o povo lá acredita que eles se engeraram e se transformaram em outra coisa, em um outro animal e continuam ali. Eles não acham que eles saíram da floresta. No nosso enredo, nada é como é. Tudo está transformado, está engerado. É tudo muito colorido, porque a Amazônia é extremamente colorida, apesar de ser ‘verdona’ se vista de cima, pois quando você a adentra, descobre as cores vibrantes, cítricas, cores que a gente não percebe normalmente, os lilases, os laranjas, que tem ali nas minúcias da floresta. Então o meu desfile está bem colorido. É um enredo encantado mesmo. Não tem como ele dar errado, de verdade. Realmente, dá para brincar muito. É uma coisa muito lúdica, bem bonita”.
Não se faz caraval sem grandes referências
Por trás de todo bom carnavalesco, há outros carnavalescos que já fizeram história no Carnaval. Marcus Paulo cita suas referências no ramo em que atua, e conta como seus ídolos influenciam o seu trabalho.
“Eu sou fã de Joãozinho Trinta e de Oswaldo Jardim. Eles criavam muito esses mundos deles. Joãozinho Trinta, em uma entrevista, foi cobrado sobre o fato de a África não ser do jeito que ele havia retratado. Ele trouxe alguma coisa que não existia lá. Aí, na época, ele falou ‘Se você quer ver a África, pegue um avião e vá para a África. Essa é a minha África’, então os meus enredos têm essa pegada. O carnavalesco tem que viajar. Ele é contratado pela arte e pela expertise dele. É um artista. Eu sou um artista. Procuro criar meus mundos dentro de mundos que já existem, colocando a minha carnavalização e as minhas fantasias, e esse enredo está me permitindo isso enormemente. Estou apaixonado, e acho que todo mundo vai se encantar com a obra”.
Este é o terceiro ano do carnavalesco na agremiação estaciana. Com um currículo que inclui outros grandes nomes como Unidos da Tijuca e Unidos de Bangu, ele fala sobre a experiência de estar mais uma vez à frente de uma das queridinhas do samba.
“É uma escola que se identificou comigo e eu estou identificado com ela. Super bacana. Muito mesmo. Inclusive, eu já tenho um fechamento para o ano que vem, seja qual for o resultado, que será positivo. “O casamento está bacana. Está legal. Eu entendi o que é a Estácia de Sá e toda a sua grandeza. Por exemplo, a preocupação que eles têm com o maior símbolo deles, que é o leão. Eles gostam de ver o leão grandioso, bonito. O desfile de escolas de samba nasceu da Estácia de Sá. Ela criou o ritmo samba-enredo. Esse ritmo do samba enredo. Ela nasceu para isso. Para disputar e ser melhor que as outras, sempre com muito respeito entre si. É uma escola que se vê grande, independente da dificuldade. Eu cheguei e peguei uma escola muito apreensiva, vindo de dois desfiles anteriores com muitos problemas. O artista anterior não entendeu muito bem o símbolo dela, e veio muito pequenininho, fazendo com que o desfile não fosse legal. Não foram os anteriores. Eu peguei uma escola bem preocupada. Bem tensa. Desde o primeiro desfile no nosso casamento, a escola está muito alegre, querendo disputar o título e voltar para o Grupo Especial. Lotam a quadra nos ensaios, lotam a rua. Costumo dizer que eu estou em casa. Faço parte dessa família estaciana hoje em dia”.
Mas nem tudo são flores. Com a pouca verba liberada para o Grupo de Acesso, os carnavalescos encontram muitas vezes dificuldades para executar suas ideias.
“Quando eu estava na Unidos da Tijuca, eu driblava essa condição, porque sabíamos que o presidente é um bom administrador, mas não é milionário igual os outros. A verba era sempre muito curta, e tínhamos que nos virar. Se buscarem por meus desfiles anteriores na Tijuca verão que não tinha luxo, mas as ideias estavam ali, bem colocadas e com boas soluções. Lá eu driblava, porque mesmo menos pomposa, tinha a verba. Aqui não tem o que driblar. Não é uma barreira que eu pulo e vou andar um pouquinho. Não tem verba, não tem poder público para olhar, não tem decência para a gente trabalhar, então temos que ser artistas ao pé da letra, estar com a arte sempre aflorada para criar alguma coisa que caiba minimamente no bolso, pois infelizmente precisamos de dinheiro, não tem jeito, não se faz carnaval sem dinheiro. Conseguimos driblar isso, minimamente, com ideias. Por exemplo, ideias para manter o visual que queremos, mas com materiais que fujam do comum do carnaval caro. Tem que ser tudo barato, mas eu procuro imprimir ali a forma do que eu quero passar com itens alternativos. Eu consegui no ano passado, temos o maior orgulho de ter levantado o troféu de terceiro lugar. Queremos mais esse ano, mas é uma escola feliz, e agora eu estou indo do mesmo jeito, disputando com escolas que divulgaram ter verbas pomposas e com outras que tem verbas duplas. Eu fui com a minha verba mínima e cheguei longe. Costumo dizer que a gente consegue fazer uma obra de arte tanto lapidando um diamante que custa milhões quanto pegando um pedaço de madeira e talhando. Tem esses dois lados da arte, e o luxo não é quesito. A obra precisa ser bem compreendida e bem desenvolvida. Eu não fico muito preocupado com dinheiro, se não tiver eu vou fazer do mesmo jeito. O que eu gosto como artista é criar. Não tem como ficar esperando alguém ganhar na mega sena ou fazer uma doação, você tem que fazer sua arte com o que tem, botar o pé no chão e tenta ser criativo o tempo todo. O que eu escrevo vira música, vira um samba-enredo que vai ser eternizado e depois transformado em elementos que compõem um desfile belíssimo que vai ser eternizado para a vida inteira. Como não ser feliz fazendo isso? Não tem nada que tire a minha felicidade, com dinheiro ou sem dinheiro”.
Dentre as alternativas citadas pelo artista, está a reciclagem de materiais utilizados em desfiles anteriores.
“O pessoal vai ver materiais bem alternativos, até mesmo reutilizados, mas de formas diferentes. Esse ano a gente começou a trabalhar muito cedo, fomos testando várias possibilidades para achar as formas e as cores para representar essa cultura dos encantados que é muito colorida e muito diferenciada do que a gente está acostumado a ver”.
Conheça o desfile da Estácio de Sá
A Unidos do Estácio de Sá vem em 2025 com cerca de 2 mil componentes, 3 carros alegóricos e 1 tripé na comissão de frente. Marcus Paulo, ao CARNAVALESCO, fez a setorização do desfile da escola.
COMISSÃO DE FRENTE: Esta ala vem com dois elencos, contando com 27 bailarinos. A abertura começa com o ritual de engeramento, que é um ritual de pagelança para poder engerar o meu leão e apresenta-lo ao que é a Floresta Amazônica. Ele não é um animal da nossa fauna, está presente no continente africano e em outros cantos do mundo, mas no nosso país não tem. Eu brinco com essa coisa lúdica onde o pagé convida ele pra um ritual de pagelança e ali engera ele, o transforma ele em um encantado e o leva para conhecer cada elemento que compõe aquela Floresta Amazônica, a qual ele está sendo convidado a proteger. Então esse ritual do leão faz parte da minha comissão de frente e do meu primeiro casal. Ali está a minha abertura, até o abre-alas, que é esse leão totalmente engerado, imerso nesse universo da Amazônia.
SETOR 1: No meu primeiro setor, o leão é recebido por Yamandacy, que é a encantada dona da mata. Os povos originários pedem permissão a ela para entrar na mata e terem um bom dia de caça, caso o contrário, eles se perdem. Aí, ela recepciona esse leão engerado, que recebe do pagé o nome de Guarini, que significa guerreiro lutador. Ela então o apresenta aos encantados que representam cada elemento dessa mata, como o que representa as pedras preciosas, o das riquezas profundas, o da vegetação rasteira, o das águas, o das grandes árvores, o do arco, e etc. Depois que ele os conhece, ele passa para o segundo setor.
SETOR 2: Aqui, Guarani conhece os encantados que protegem a floresta, e percebe que a ganância ou qualquer seja o sentimento que alguém tem ao entrar na floresta e na própria natureza, se volta contra ele e reverbera nesses encantados. É o encantado que percebe quando você entra com ganância e te prega peça, como trançar seu pé no cipó para que não consiga andar ou te cegar no meio da mata para você se perder do seu caminho. Eles têm umas artimanhas que te deixam tonto. Assim, ele passa a saber como é feita a
proteção da floresta.
SETOR 3: No terceiro setor, nosso leão conhece os encantados que representam as festas e os folclores da Mata Amazônia. As pessoas conhecem muito Parintins, não é? Mas lá tem uma centena de outros festivais. O Festival de Mocambo, o Fstival de Capiranga, o Festival folclórico de Manaus. E cada festival desse tem um encantado como representante. Por exemplo, a Adana Encantada, que é uma serpente que vive no fundo da ilha, representa o festival de Manaus. Os bois, que quando estão engerados ali com os tripa, que representam o festival de Parintins. E tem um outro festival que é representado por um Mocambo, por um cavalo marinho. Então, o leão também conhece esses encantados que representam cada festival. E no final, ele convida esses encantados a participar do nosso desfile aqui na Marquês de Sapucaí. Esse enredo é lindo. Estou literalmente encantado por ele. Espero que todo mundo se encante também”.