O Arranco do Engenho de Dentro homenageou em 2024 a psicanalista Nise da Silveira, mulher que revolucionou o setor psiquiátrico do Brasil ao implementar tratamentos humanizados para pacientes com transtornos mentais, em meados dos anos 40. Ela é lembrada até hoje como exemplo de sensibilidade e humanidade. Neste ano, a escola da Zona Norte novamente levará para a Avenida o poder feminino de transformar o mundo através do cuidado, onde as mulheres serão representadas pela figura materna no enredo “Mães que Alimentam o Sagrado”. O CARNAVALESCO entrevistou Annik Salmon, autora do enredo e única mulher no posto de carnavalesca da Série Ouro. Ela nos contou de onde veio a inspiração para construir a história do desfile da escola.
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![Barracões Série Ouro: Arranco do Engenho de Dentro representa a força feminina no carnaval carioca 1 arranco barracao25 1](https://carnavalesco.com.br/wp-content/uploads/2025/02/arranco_barracao25_1.jpg)
“O meu despertar para desenvolver esse enredo foi quando eu recebi o convite da Tatiana Santos (presidente da escola) para ser a carnavalesca do Arranco e aceitei. O primeiro encontro que eu tive com ela foi na quadra, em uma festa de feijoada. Assim que eu entrei nessa quadra, já me deparei com a Diná Santos, que é a presidente, cozinhando, fazendo a feijoada para todo mundo. Ela mesma que cozinha e fica sempre tão preocupada, sabe? Se todos estavam comendo, se o pessoal da bateria já tinha comido, e perguntava para mim, ‘Niki, já comeu? Vem cá pegar seu prato de feijoada’. E era uma comida deliciosa, feita com carinho, com amor. Com aquilo, já eu fiquei ‘nossa, que interessante’. E uma escola presidida por mulheres: a Diná, a filha, Tatiana, e a filha dela também, que é a secretária, me contratando como carnavalesca, agora então a única carnavalesca mulher. Uma escola muito feminina e matriarcal, com segmentos femininos, como a intérprete do carro de som, a Pâmela. E eu me senti em casa. Me senti abraçada”.
A moça reforça o encantamento pelo tema quando afirma ter escolhido fazê-lo por conta própria, passando pela aprovação da vice-presidente Tatiana Santos. “Eu já cheguei na escola com uma proposta de enredo pronta, mas conversando com ela (Tatiana) e conhecendo essa essência do Arranco, mudei de ideia. Eu também sou muito guiada pela minha intuição, e nesse dia, quando fui para casa depois de ficar muito feliz lá na feijoada, tive um sonho onde eu meio que dei estalo, e conclui que o meu enredo teria que ir por esse caminho. Aí eu quis falar dessa questão de mãe, da alimentação e do afeto de mulheres. Aí veio o desafio: como desenvolver isso dentro de uma narrativa para ser mostrada na avenida? Aí que entrou a pesquisa com o Artur, que já era o pesquisador enredista da escola, e no segundo dia de encontro com ele já começamos a desenvolver tudo”.
Maternar é mais importante do que a maternidade
A figura da mãe nesta narrativa vai muito além do fator biológico. Salmon não foca na capacidade dar a luz ao abordar a relação da maternidade com a mulher na sociedade. O ato de maternar aqui quer dizer cuidar, e não somente dos próprios filhos.
“O primeiro alimento vem dos seus seios, do corpo feminino. Mas aí eu pontuo muito bem nesse enredo que, antes de toda mãe ser uma mãe, ela é uma mulher. Pode ser uma mulher que já nasceu mulher, ou também uma que escolheu ser mulher. O que eu defendo é que toda mulher é uma mãe, mesmo sem gerar uma vida. Tem aquelas mães que cuidam da sua comunidade, tem as mães que cuidam todo de terreiro de Candomblé, tem adotivas, tem as tias que cuidam dos sobrinhos, que também são mães, e as que geram e cuidam dos seus filhos. Mostro que às vezes o ato de maternar é muito mais importante do que a própria maternidade em si. O carinho e o afeto que vem das mulheres, independente delas terem escolhido ser mães biológicas ou não”.
Mães e ancestralidade
Na sua pesquisa, a artista quis explorar a ligação que a mulher tem com o zelo e a proteção no imaginário popular, e buscou referências que comprovam que essa ideia existe no pensamento coletivo desde os primórdios da nossa história.
“Essa temática começa com a questão ancestral que envolve todo o arquétipo da mulher feminina, da mãe, dentro de uma cultura afro-iorubá. Para eles, a mãe é sagrada, e muito mais até que um Orixá. É uma divindade a quem eles são gratos e têm devoção. Aquele ultra, aquela cabaça, aquele símbolo mítico africano que é capaz de gerar e guardar os mistérios da vida. A gente começa essa pesquisa, desenvolve esse enredo por essa pegada da ancestralidade, até chegar nessa pluralidade que é o nosso Brasil, onde essa
crença não está somente nas religiões de matriz africana, mas nas outras também, como, por exemplo, na religião católica, onde há a devoção à Nossa Senhora. E não tem como falar de ancestralidade sem falar dos indígenas. Quando a gente entra também na questão que envolve a mãe nas lendas e crenças dos nossos povos originários. Falar de mãe também é falar da natureza, que, afinal, é conhecida como a ‘mãe Terra’. A associação vem do feminino, da ideia de que, se cuidarmos bem dela, a Terra vai continuar produzindo alimentos para nós, para os nossos filhos e para os nossos outros que ficam”.
O que representa o alimento sagrado na Arranco 2025?
Ao permear entre os conceitos de mãe, mulher, ancestralidade, fé e alimentação, uma pergunta fica no ar: o que, de fato, é sagrado para uma mãe? As prioridades e desejos mudam de acordo com as vivências e o contexto no qual estão inseridas essas mães, que, antes de tudo, são mulheres. Mas é inegável que há um motivo em comum que move a maioria delas, e é neste aspecto que Annik quer se aprofundar.
“O alimento representa a nossa fé, quem a gente cultua dentro da nossa espiritualidade, dentro da nossa crença, seja ela qual for, mas também aquilo que é sagrado para toda mãe, que são seus filhos e sua família”.
Luta das mães representa a luta das mulheres
“As mulheres estão atuando o tempo inteiro na rua, buscando como levar esse alimento para os seus sagrados dentro da sua casa. Elas estão na luta diária dentro dos seus ofícios, sejam eles quais forem. São as mulheres que cuidaram da terra onde se tira o alimento. Elas que vão para a feira, elas que são as donas do mercado. Foram as mulheres, principalmente as mulheres negras, as primeiras a ocuparem as ruas no mercado e ali faziam seu cambio, seu movimento de troca com as suas vendas. Muitas dessas mulheres estão ali vendendo seu alimento, levando o que produziram nas hortas de suas pequenas casas, mas não têm o que comer. A gente também fala dessas mulheres que vão ali no resto da feira buscar o que não se vê beleza, que é o resto, e levar para fazer uma comida maravilhosa para os seus filhos em casa”, complementa.
As mulheres na atualidade
Annik considera o fato de colocar as mulheres em evidência o grande trunfo de seu desfile, por conta da desigualdade social que ainda existe entre os gêneros no mundo atual. Ela relata sua experiência pessoal como a única representante feminina no cargo de carnavalesca da Série Ouro do carnaval carioca, e uma das únicas do carnaval em geral.
“É um enredo que fala da escola, porque é a essência feminina, mas que também fala muito de mim, da minha história, de mim como artista, profissional e mãe. Eu pensei ‘é um momento tão importante para a minha vida, quanto para a história do Arranco. Ainda somos colocadas em lugares subalternos na sociedade, pois somos consideradas para muitos o sexo frágil. Ainda temos desigualdade salarial, sofremos muito machismo, muito preconceito, às vezes simplesmente pelo fato de sermos mulheres. Estou mostrando no meu enredo do início ao fim que a mulher ela é forte e pode ocupar seu espaço onde ela quer, mesmo ainda a gente tendo que driblar o preconceito o tempo. A gente tem que mostrar diariamente que somos capazes de fazer aquilo que a gente quer. E isso cada uma dentro da sua profissão, cada uma dentro da sua área. E quando eu falo de mãe, a gente sempre relaciona, porque o tanto que ela luta diariamente dentro do seu ofício para conseguir levar o sustento para esses seus sagrados, só a mulher é capaz de fazer. Mostro isso no desfile, exatamente a força dessas mulheres, para mostrar que nós somos o sexo
resistente sim”.
Salmon tem um extenso currículo no carnaval. Começou sua carreira como assistente e figurinista de Alexandre Louzada, na Porto da Pedra, em 2003, e estreou como enredista em 2007, na Acadêmicos do Cubango. A partir dali, teve a maioria de seus enredos feitos para as escolas do Grupo Especial. Após dois anos consecutivos à frente da Mangueira, ela retorna para a Série Ouro com a Azul e Branca da Zona Norte, e relata as dificuldades que vem encontrando depois da experiência na Verde e Rosa.
“Voltar a fazer a Série Ouro não é fácil, é muito difícil. Aqui no barracão, a realidade das coisas é muito diferente. A gente não tem uma estrutura como a o do Grupo Especial. Temos que fazer carros melhores, assim como pensar em enredos mais enxutos. Enquanto a gente está no Especial, conseguimos desenvolver o enredo em cinco, seis setores, com seis alegorias. Aqui temos que pensar em uma temática que precisa ser reduzida para três setores e três alegorias. Até pensar em desenvolver esse enredo, com uma temática em que ele seja mais enxugado, é um trabalho mais difícil. Quando a gente começa a abrir esse leque e pensar numa proposta, a gente quer ampliar muito mais. Eu poderia fazer esse enredo em 10 setores, enquanto isso, temos que resumir e fazer em três. Voltar para o Acesso e fazer isso é pensar até em quais pontos são os mais importantes dentro da matemática, quais que vão tocar mais o público, quais são mais interessantes visualmente, e tudo isso dentro de uma dificuldade financeira”.
A artista também contou como faz para ultrapassar as barreiras impostas por essas dificuldades financeiras, admitindo ser “muito pé no chão”.
“Nós dividimos barracões, pois tem barracões que molham quando chove, aí se não dividíssemos teríamos que cobrir esculturas. Isso porque aqui não temos uma verba tão alta. Hoje mesmo estávamos olhando aqui e pensando ‘vamos cobrir esse carro com a lona?’, e a gente não tem essa praticidade. Agora estamos em um barracão que está só a gente, mas o teto direito é muito baixo. Tenho que pensar em como vai ser o carro, e fazê-lo mais baixo do que eu gostaria de fazer, e ainda tenho que pensar como vou fazer para que esse carro cresça lá na avenida. Tem que ter todo estudo com o ferreiro, de como fazer esses carros, ao mesmo tempo todo esse mecanismo tem que ter um custo maior. Se eu já tivesse teto alto, eu sairia na altura que eu queria. É tudo mais complicado, mas pensamos da melhor maneira e estudamos para que consigamos fazer um carnaval bonito e seguro, sem correr tanto risco de carro quebrar ou não chegar inteiro. Eu gosto muito de trabalhar dentro da realidade, dentro do que me permite, então se o que o barracão me permite hoje são carros menores, eu vou fazer carros menores. O desafio hoje é isso, é trabalhar dentro do possível para impactar o público com uma arte bonita, mesmo com uma proporção menor”.
Mas não pensem que a profissional está insatisfeita com o trabalho que está fazendo na Arranco. Apesar das adversidades, ela fala com muito carinho sobre a agremiação.
“Estou muito feliz no Arranco, é uma escola onde fui abraçada por essas mulheres. É uma escola feminina, matriarcal, eu me sinto acolhida, pertencente a essa comunidade, a essa família. Como artista, o importante é estar atuando e fazendo carnaval, independentemente de ser uma escola de Grupo Especial ou da Série Ouro. O importante é a gente estar fazendo o nosso trabalho e eu espero sempre ter espaço mesmo pra poder desenvolver minha arte, que é a coisa que eu mais amo fazer”.
O Arranco encontrou na sustentabilidade a solução para a falta de verba para os desfiles. Essa iniciativa é excelente, tendo em vista o grande percentual de acumulação de resíduos provenientes dos materiais utilizados em fantasias e alegorias das escolas de samba. Artur Amaro, pesquisador de enredo da escola, falou sobre como é o processo de reutilização de materiais no processo criativo da escola.
“Nosso carnaval é muito pensado na sustentabilidade. A gente projeta, faz protótipo com determinados materiais, e quando o dinheiro cai, temos que substituí-los, porque não os encontramos. Vou usar o que eu tenho hoje em mãos. A nossa escola está vindo com quase 90% de materiais de reuso, dentre eles, materiais que já tínhamos, como ferragens de outros carnavais. Fui reaproveitando. Já fiz o projeto pensando nisso, desde o início. É claro que temos materiais novos que a compramos para algumas alas, mas eu realmente pensei o tempo inteiro em fazer um carnaval sustentável mesmo, tanto em alas quanto em alegorias. Não dá para levar para a avenida o discurso que fala sobre como as mulheres conseguem ter o poder de transformação e não apresentar isso. Como que vamos ter um desfile que diz ‘cuide da terra, cuide da natureza’, se a gente sabe o impacto do lixo que o carnaval produz? Desde o início tivemos a preocupação de começar a pensar em como reutilizar esses materiais e leva-los para a avenida de uma forma inédita e impactante. O carnaval precisa ser comunitário, além de ser bonito. Precisa falar do Brasil, e se tem uma coisa que esse terreiro mais fala é do Brasil, porque é o país que tem grande parte das suas famílias chefiadas por mulheres, que é o primeiro instrumento de resistência africana. Eu quero pensar em um carnaval que tenha a força dessas mulheres que eu me inspiro”, comentou Artur.
“Eu chego na escola e me deparo com essas pessoas que também pensam assim como eu. A nossa vice-presidente, a Tatiana, até brinco que ela é acumuladora, porque ela guarda muito material. Temos também o ferreiro Elcio, que é meu amigo, e já trabalhamos juntos em outras escolas. Ele também é assim. Eles dois são importantes para o meu processo de criação, pela maneira como pensam. Hoje você entra ali e vê no barracão um monte de coisas no chão que a gente realmente está reaproveitando”, complementa Annik.
Conheça o desfile do Arranco do Engenho de Dentro
O Arranco do Engenho de Dentro vem em 2025 com cerca de 2 mil componentes, 3 carros alegóricos e 1 tripé na comissão de frente. Annik Salmon, ao CARNAVALESCO, fez a setorização do desfile da escola.
PRIMEIRO SETOR: Abordo a ancestralidade em volta dessa mãe por um ancestral, que vem da África, que é o berço dessas mulheres que são consideradas pelo povo Yorubá como sagradas. Para eles, a mãe é um ser mágico e único, que tem que ser valorizado e cultuado. Eu abro por aí e chego no nosso Brasil mostrando que essas mulheres venceram e conquistaram aqui os seus espaços, que são os terreiros. Foram essas matriarcas que fundaram os primeiros terreiros de Candomblé aqui no Brasil e hoje muitas mães seguem
esse legado que foi dado e colocado aqui pelas mãos delas.
SEGUNDO SETOR: Nesse eu falo da pluralidade que tem aqui no nosso Brasil, que envolve questões religiosas, festivas e culturais relacionadas à mãe. Falo da fé católica, da fé dos povos originários e da fé que brota da terra.
TERCEIRO SETOR: É o setor da resistência, no qual eu falo mais da atualidade, das mulheres que estão na luta dia a dia para vencer, cada uma com seu ofício, cada uma dentro do seu mercado de trabalho, mas que continuam ali lutando e vencendo para levar esse alimento para dentro de casa, para conseguir criar esse seu sagrado que são seus filhos.