Por: Diogo Cesar Sampaio
O ano era 1984. O dia, 04 de março. Tratava-se de uma segunda-feira de carnaval. As escolas de samba do Rio debutavam na Marquês de Sapucaí, que recebia a segunda noite de desfiles do Grupo 1A, atualmente conhecido como Especial. A Unidos da Ponte era a segunda escola a entrar na avenida, e trazia um enredo de temática negra e afro, chamado “Oferendas”. A proposta era simples: trazer em cada ala e carro alegórico um orixá, seguido de sua oferenda, de maneira intercalada e contínua.
Sem deter de muitos recursos financeiros, a escola da Baixada Fluminense apostava em uma plástica simples, chegando a usar comidas de verdade em seu desfile. Porém, tinha na força do seu samba o seu grande trunfo. Uma obra com melodia envolvente e letra didática, que quase se tratava de uma aula de como e o quê ofertar para cada orixá.
Entretanto, a apresentação modesta da azul e branca de São João de Meriti não foi suficiente para manter a escola na elite, sendo rebaixada para o Grupo 1B, atual Série A, no ano seguinte. Todavia, aquele samba de 1984, apesar do infortúnio rebaixamento, entraria para história da escola e da festa, e se tornaria um clássico. Hoje, passados quase 35 anos do desfile original, a Unidos da Ponte novamente levará “Oferendas” para Sapucaí.
Responsáveis por fazer esse novo desfile, os carnavalescos Rodrigo Marques e Guilherme Diniz receberam a reportagem do site CARNAVALESCO no barracão da agremiação. Durante a entrevista, a dupla relatou que farão uma releitura do que foi apresentado anteriormente, e não exatamente uma reedição. Em sua segunda passagem pela Sapucaí, “Oferendas” virá com uma nova estruturação e organização de enredo, além de uma estética atualizada, com toques mais modernos, se comparado ao que foi apresentado em 1984.
“Por mais que seja um enredo reeditado, estamos fazendo uma reconstrução estética total. Não é nem uma reedição, é uma releitura, por vários motivos. O desfile original foi concebido para outra época, para outro modelo de desfile. A proposta de desfile de 1984, na nossa concepção, hoje em dia, não atenderia a Sapucaí. O maior desafio entre algo próprio, que fosse nosso, e respeitar uma reedição, foi o fato de, nesta reedição que estamos propondo, ser uma proposta original. Estamos respeitando toda a construção original da Ponte de 1984, mas trazendo características próprias em tudo. Como fantasias novas, uma leitura estética diferente, a construção dos carros e até mesmo algumas curiosidades. A gente respeita tudo que foi feito, tanto em nível de desfile, quanto de religião, ancestralidade. E se você reparar, no nosso samba, o único orixá que não é ofertado nada é Oxalá, como é visto no verso “Pai Oxalá, nosso canto de fé”. É algo que estamos obedecendo e estamos levando, de fato, a sério. Na época, pelo que várias fontes me falaram, após ser feito um jogo de búzios, o único orixá que não aceitou nenhuma oferenda foi Oxalá. O samba foi trabalhado realmente com a questão da fé e da prosperidade. Então, estamos levando essa curiosidade, respeitando e fazendo dessa forma.” – é o que conta o carnavalesco Rodrigo Marques.
“A força e a importância que esse enredo, que esse samba tem, sozinhos, já fariam a diferença. Mas, visualmente estamos dando nossa cara, a nossa roupagem atual, como o Rodrigo falou. Estamos conseguindo fazer um trabalho à altura desta grande escola, e principalmente, à altura deste grande enredo. A Ponte após 12, agora 13 anos, retorna para a Sapucaí. Um palco que nunca deveria ter saído, pelo tamanho deste pavilhão. E nada mais justo que nós, como responsáveis pela parte plástica do desfile, devolvamos a Ponte o que ela merece: um carnaval a altura desta agremiação. Acho que conseguiremos fazer isso. Além, é claro, de passar a nossa mensagem visualmente para o público, com uma fácil leitura e compreensão.” – complementou o carnavalesco Guilherme Diniz.
Segundo o que a dupla de carnavalescos conta, a ideia de trazer de volta “Oferendas” não partiu deles, mas sim do pedido de torcedores da escola e de sambistas em geral, apaixonados pelo samba. A proposta foi considerada, e rapidamente acabou sendo abraçada pelos artistas, recém-chegados na Unidos da Ponte.
“Quando a gente foi contratado, existiam várias possibilidades de enredo por parte da direção da Ponte. Nós mesmos tínhamos algumas outras possibilidades nossas, autorais. Contudo, muita gente de fora pedia para reeditar Oferendas. É um samba histórico, que precisava de um desfile a altura dele. Então, passamos a levar isso em consideração ao longo do processo e apresentamos a ideia para a escola. A proposta foi prontamente aceita, sendo praticamente um clamor. Vale ressaltar que, durante o processo, a gente foi ouvindo muita gente da escola, tanto direção, quanto componente, e até torcedores. Foi um trabalho mútuo.” – disse Rodrigo.
E durante a entrevista, Rodrigo e Guilherme confidenciaram o que mais chama a atenção, de cada um deles, no trabalho plástico que vem sendo desenvolvido para Ponte em 2019.
“Nosso processo de criação para esse carnaval foi ao inverso. De trás, para frente. Porque já tínhamos o enredo e o samba. Vimos o que poderia ser feito, olhando para o desfile da época, e trazendo uma linguagem atual. A nossa ideia é que começasse muito bem e terminasse muito bem. Acho que o grande destaque da Unidos da Ponte será o último carro em minha opinião. Embora o abre-alas seja bem imponente também, que é o carro favorito do Guilherme. Então, abrimos bem e fechamos bem.” – comentou Rodrigo.
“Quando desenhamos um carnaval, sempre acontece de uma criação chamar um pouco mais a nossa atenção. Então sim, nós temos um carro preferido. Mas a medida que o tempo vai passando, ficamos confusos, e passamos a não ter mais uma alegoria favorita. Por exemplo, o carro de Xangô sempre foi um dos favoritos. Mas ao longo do processo, o terceiro carro, o de Iemanjá, passou a ser também. Acho que conseguimos dar uma leitura legal. Acho que, de alegoria, realmente o abre-alas e a última vão destoar muito. Mas todos os carros estão bem legais. A ponte passará bem na avenida” – garantiu Guilherme.
A crise no carnaval e os preparativos para o desfile
O carnaval de 2019 da Unidos da Ponte não marcará somente o retorno da agremiação a passarela do samba, depois de mais de uma década. O desfile desse ano também representa a estreia da dupla de carnavalescos Guilherme Diniz e Rodrigo Marques na Sapucaí. Com larga experiência no carnaval da Intendente de Magalhães, os jovens artistas contam no currículo com passagens pelo Engenho da Rainha e pela Difícil é o Nome, além de terem sido campeões da Série B em 2017 com a Unidos de Bangu.
Acostumados a trabalhar em condições adversas, a dupla não se deparou com um cenário muito melhor ao chegar a Série A. Porém, a vivência adquirida em seus outros trabalhos deu suporte para driblar as dificuldades, como os cortes de verba, atrasos nos repasses e a escassez de material, que marcaram os preparativos para o carnaval desse ano. A maneira antecipada em iniciar a construção e confecção do carnaval, foi outro trunfo dos dois diante o cenário de crise.
“O nosso diferencial para esse projeto foi ter começado cedo. Desenhamos as fantasias muito cedo, os carros também. Fizemos o checklist de esculturas que precisaríamos muito cedo. Quando você vai cedo para o mercado, encontra material mais barato, mão de obra mais barata, mão de obra qualificada mais barata, também. Nossas fantasias já estão prontas faz tempo. Fizemos tudo do zero. Não há nada reutilizado de outra escola. Em julho, já tínhamos 70% do trabalho, ou até mais. Nós paramos quase um mês ou um mês e meio o trabalho, porque senão, estaria tudo pronto muito cedo. Nosso barracão é na beira da Avenida Brasil, então tem muita sujeira aqui. Também tivemos um incêndio aqui que nos impactou. Quando chove, chove mais aqui dentro que lá fora. Então, tivemos de parar. Se não estivesse parado, hoje estaríamos fazendo retoques e limpando as alegorias. O nosso diferencial foi o planejamento. Quando a crise estourou para gente, já estávamos com quase 50% do trabalho. A crise afetou? Sim. Mas, nós já havíamos dado o start. Não dava para voltar atrás. Não estamos nadando no dinheiro. Estamos usando materiais mais baratos e alternativos. Está difícil para todo mundo. E ainda mais pra gente. Pois, chegamos agora no grupo e não tínhamos estrutura de alegoria, de barracão. O tempo nunca foi adversário para a Ponte. Sempre foi nosso aliado. Ao longo do processo, fomos aprendendo e aprimorando várias coisas.” – falou Guilherme.
“O barracão aqui é bem insalubre. Não temos a estrutura que gostaríamos de ter, embora, tenha escola com situação bem pior. Normalmente, fazemos um projeto com nível de Grupo Especial e ao longo do processo, ele vai sendo tesourado. Porém, esse ano, fizemos um projeto pé no chão. É um projeto palpável. Como o Guilherme citou as fantasias já estão prontas desde setembro. Os nossos carros já estão em processo de finalização, desde o início de fevereiro. E um exemplo de como tempo foi favorável a nós, no incêndio que teve aqui, perdemos uma escultura que era o plano A de execução. Na época, ficamos bem chateados. Mas hoje, enxergamos que foi algo benéfico, pois a solução final ficou melhor do que a que nós tínhamos orçado. Sobre o tempo, ele tem nos ajudado a tomar melhores decisões, melhores soluções, com certeza.” – relembrou Rodrigo.
Em busca de garantir a permanência na Série A, a Ponte pretende fazer um carnaval volumoso e grande, porém, respeitando a realidade financeira da escola. A dupla Guilherme Diniz e Rodrigo Marques pretendem utilizar de efeitos e esculturas com movimentações nas alegorias, para trazer um algo a mais no trabalho realizado.
“O que vai fazer muita diferença em nossos carros é a construção deles, em geral. Teremos iluminação e movimentação nas quatro alegorias. A divisão das esculturas e os pontos “X” delas para fazer o movimento, no conjunto, será o grande diferencial do trabalho. Pois, escultura com movimento, hoje todo mundo faz. Basta colocar um tubo solto, que a escultura irá girar para um lado e para o outro. O diferencial é saber colocar, escolher o lugar certo que vai posicionar. Não teremos nada de surreal, algo que nunca foi visto. O que vai passar pela Ponte, é algo que já foi visto em outros carnavais. Contudo, com outra cara e outra estética. Esse é o nosso primeiro carnaval na Serie A, mas já vivenciamos carnaval faz tempo. Você tem que pensar, por exemplo, num material que se chover e molhar, não vai manchar a pintura de arte, por exemplo. Na Série A, temos sempre que pensar no pior. É uma surpresa atrás da outra.” – relatou Guilherme.
E no atual cenário de crise, se faz ainda mais necessário o uso de alternativas para substituir materiais mais caros ou em falta no mercado. E é nessas circunstâncias que a criatividade se fez presente.
“Um material que a gente apostou muito na confecção desse carnaval foi o epicote. Ele é um material que não é tão caro assim, tem vida própria, ele brilha. Com a iluminação por cima, ele irá gritar. Será um dos nossos diferenciais. Ele por si só, é uma espécie de emborrachado que é impermeável. Caso suje, é possível limpar com um pano ou vassoura. Ele é um material que já é usado por alguns carnavalescos. Não em grande escala. Mas, achamos que em pouco tempo, ele será bastante usado.” – declarou Rodrigo.
Entenda o desfile
A Unidos da Ponte terá a missão abrir oficialmente o carnaval carioca, sendo a primeira escola a desfilar na sexta-feira. A azul e branca levará para a Sapucaí quatro alegorias, sem acoplamento, 21 alas e 1700 componentes. O carnavalesco Rodrigo Marques detalhou como vai funcionar a setorização do enredo:
Setor 1: Terreiro
“O primeiro setor é o terreiro estilizado. Usaremos vários materiais rústicos. Por trabalharmos com iluminação, acreditamos ser o grande diferencial da escola os materiais utilizados. Através do terreiro, traremos toda a ancestralidade. Teremos alguns Eguns no abre-alas também. É ainda no primeiro setor que trazemos os africanos que vieram pra cá, foram suprimidos e tiveram tudo roubado. Exceto a parte espiritual, que foi mantida com eles. Toda aquela referência no samba “Malungo se liberta no Zambê/ Esquece o banzo” a gente fez nos carros, assim como nas fantasias, com uma narrativa bem direta e bem em cima da letra. Essa parte do terreiro, dos africanos que vieram para cá e trouxeram sua ancestralidade, será logo nosso primeiro carro.”
Setor 2: Xangô
“Originalmente em 1984, a Ponte fez algo que a principio pensamos em não fazer de inicio. A escola vinha com um Orixá, por exemplo, Xangô. E atrás, vinha com a oferenda dele. Então, ao longo do nosso processo, pensamos que seria cansativo. Nesse segundo setor, apostamos em fazer a fantasia de Xangô e trazer os elementos de suas oferendas. Afinal, nós estamos falando de Orixás. Logo, todas as alas vêm falando de orixás. O maior desafio em relação a setorização foi caracterizar, qual orixá tem relação com Xangô.”
Setor 3: Iemanjá
“Tem todo um porque dela, da devoção a ela. Uma coisa importante a ressaltar no nosso enredo, que a base dele, é o candomblé. Apesar de a umbanda ter uma representação, o ponto principal é o candomblé. Originalmente, esses escravos que pra cá vieram, trouxeram os orixás, que resultaram na criação do candomblé. O surgimento da Umbanda se deu por outros motivos. Lógico, que vai ter elementos da umbanda no desfile. Mas, o foco é o candomblé. No carro de Iemanjá, vamos trazer a Iemanjá do candomblé, que traz alguns pontos de diferença pra a representação dela na umbanda. Novamente, teremos os orixás que tem alguma relação com ela, filhos e netos de Iemanjá.”
Setor 4: Oxalá
“Nossa ideia de fechar com Oxalá é pelo significado do nome dele. Tem toda uma representatividade em cima do nome dele. Neste momento, nunca é demais lembrar que as religiões de matriz africana sofrem algum tipo de perseguição pelas suas práticas. Nós quisemos trazer Oxalá para mostrar que a religião não é nada disso, que existem boas práticas. Se a religião sofre preconceito, o enredo também sofre, até porque fala sobre oferendas. O objetivo central é mostrar o porquê se oferta algo para uma entidade. No carro de Oxalá conseguimos mostrar isso de maneira mais clara, desmistificando alguns preconceitos.”