Vice-campeã do carnaval de 2018, a Mocidade Alegre entra pra avenida em busca do 11° título. A carnavalesca Neide Lopes, que integra a comissão de carnaval, é uma das responsáveis pelo enredo: “Ayakamaé – As Águas Sagradas do Sol e da Lua”, uma homenagem ao Rio Amazonas.
“É um tema que a gente trabalha a lenda do surgimento do rio Amazonas , toda a contribuição que ele tem pra Amazônia e todas as lendas, mitos, povos das florestas. Então ele é um grande vôo do rio, desde quando ele nasce até o momento dele desaguar quando encontra o mar. Nós rufamos os nossos tambores e tremulamos o pavilhão em homenagem a esse rio. A mocidade se torna não só a morada do samba, mas se torna também a morada das águas pra contemplar esse grande tesouro”.
Neide Lopes revela que enredo é uma antiga lenda romântica indígena e afirma que escola está entrando no clima que o tema propõe.
“É uma história que a gente sempre ouviu, na escola sempre ouvíamos desse amor do sol com a lua. Em 1996 dois compositores do boi caprichoso fizeram uma toada que conta a lenda de forma mais romântica ainda. Quando a gente ouviu, aquilo nos deu muita inspiração, porém só se concretizou em 2005. Estávamos no Império de Casa Verde e aí teve uma grande seca no rio Amazonas, a gente viu o sofrimento do nosso povo e isso nos deixou muito tristes, então resolvemos escrever um enredo que falasse sobre a importância do rio. Colocamos no papel, mas em 2006 o Império fez um enredo patrocinado e acabou que o Ayakamé ficou pra depois. A gente chegou a apresentar na Grande Rio e em outras escola, mas sempre tinha aquela questão de ‘ah, vamos ver’, ‘é um enredo grandioso’, ‘tem um custo maior’, ‘é trabalhoso’. Pra esse ano, depois do enredo sobre Alcione, a Mocidade se interessou em fazer um enredo indígena. Na reunião a presidente Solange pediu uma ideia de tema que fala sobre alguma lenda indígena, depois eu resolvi falar sobre o enredo pronto, que há treze anos estava escrito, e a escola ficou encantada. Tá sendo muito bacana falar de uma cultura que é próxima do samba, porque não deixa de ter o batuque, essa importância do negro, e conseguir trazer isso pra comunidade tá sendo muito legal. As pessoas estão sentindo essa energia indígena da Amazônia, e eu fico muito emocionada”.
A lenda contempla o amor do sol com a lua, sobre isso a carnavalesca Neide Lopes nos contou um ponto alto do desfile
“A gente foi ajustando o enredo pra ficar com a cara da Mocidade Alegre. Eu acho muito bacana ressaltar o primeiro setor, porque a gente fala do amor, e o último encerra esse grande amor dos astros. Então, no primeiro setor a lua vem separada do sol e no último eles se reencontram, e não da pra se ver de frente, é só na lateral, é para o público mesmo. A gente quer que o público se sinta dentro dessa história de amor”.
Sobre desfile grandioso e suntuoso, Neide defende outra intenção.
“Queremos mais que passar bem, a gente quer encantar, quer emocionar o público, vivenciar um momento alegre, feliz, que é o que a Mocidade Alegre é, uma escola de união, força, garra e simplesmente de alegria”.
Carnavalesca é a única parintinense a assinar enredo no estado
A importação de profissionais vindos de Parintins cresce a cada ano no carnaval de São Paulo, eles estão presentes em diversos barracões e ateliês. A Neide iniciou sua trajetória no festival dos dois bois, mas se engana quem acha que a carnavalesca começou agora.
“Sou de Parintins, estou nessa trajetória cultural há 28 anos. Nós começamos exatamente em Parintins, eu falo nós porque eu e o Carlos sempre estivemos juntos, além de meu esposo ele é artista plástico. Trabalhamos em várias festas regionais além do festival folclórico de Parintins, até que surgiu a oportunidade de vir pra São Paulo, isso em 1999. Chegando aqui começamos pela Nenê de Vila Matilde e depois conhecemos o Império de Casa Verde, na época no acesso. No ano de 2001 fizemos um trabalho paralelo entre Império e Tucuruvi. No ano seguinte no especial, o Seo Chico Ronda propôs um projeto ousado de dar uma cara pro Império porque até então a escola era muito nova, e o projeto era de fazer uma grande escola, com alegorias grandiosas. Com todo esse suporte, eu e o Carlos nos mudamos para São Paulo. O primeiro ano foi bem difícil porque quase caímos, no ano seguinte voltamos nas campeãs e em 2005 fomos campeões, 2006 bicampeão e em 2007 foi o nosso último desfile. Nesse ano em questão recebemos o convite de fazer o carnaval da Grande Rio, e ficamos dez anos trabalhando ali, Grande Rio, Salgueiro, Mangueira, Império Serrano, fizemos várias escola mas o Salgueiro era a qual ficávamos com mais exclusividade, onde fomos campeões em 2009. Em 2015 recebemos o convide do Mocidade Alegre para participar da comissão de carnaval na época com o Sidney França e permanecemos até hoje”.
Neide explica o motivo que voltou para São Paulo e afirma que carnaval carioca precisa ser mais valorizado.
“Foi uma questão familiar, em 2015 nós já estávamos sentindo umas problemáticas do Rio, em termos de verba, logística, e isso já estava desandando, como se fosse um pré-crise, hoje isso se agravou bem mais. Se a pessoas não sentarem pra discutir acordos em prol do carnaval do Rio, o evento tem a perder muito. Eu que sou produtora cultural vejo falta de conscientização de alguns, inclusive de líderes governamentais. A cultura é um recurso de transformar vidas, e infelizmente isso não é vista pra alguns. A gente trabalha no carnaval o ano inteiro, e se colocar o ângulo do minimo para o máximo, vai perceber que atinge muitos setores, fornecedor de tecido, material, cola, isopor, de tudo, isso está empregando pessoas. Você sai do ambiente interno e vai para o externo, você tem a movimentação em hotéis, uber, alimentação, viagens, tudo que circula em prol do acontecimento. Isso não é só no período fevereiro/março, é o ano todo. O deslocamento que tem de profissionais de Parintins e a renda que tem lá, tem um grande intercâmbio econômico. As pessoas tem que entender a importância da cultura, e no Rio essa crise está mais agravada ainda”.
Amazonense apaixonada pelas suas raízes, Neide comenta sobre diferença do festival de Parintins com o desfile de escola de samba e ressalta que a disputa dos bois serve de vitrine para os profissionais do norte.
“Em Parintins a cidade toda é preparada em prol da disputa dos dois bois.Você tem os bois de rua que arrasta mais de cinco mil pessoas, que é uma prévia da disputa. A cidade é construída em prol da festa e exporta vários talentos, mas existe uma dificuldade de fornecimento de material, e aí existe a vantagem do improviso, porque lá se usa os recursos que tem. Se tem uma escultura de cipó, é porque era o único recurso disponível e o mais barato. É importante frisar que lá se tem mais mãos de obra, então o processo de construção de Parintins é muito mais rápido que em São Paulo. Já o carnaval do Rio de Janeiro e o de São Paulo é pensado com bastante antecedência, e aqui nós temos também a farta diversidade de materiais, isso faz com que a gente consiga bater o olho e executar tal coisa, talvez um tecido, uma arte gráfica, até material de construção civil. Outra coisa também é a estrutura, o sambódromo de São Paulo tem uma ótima estrutura, diferente do Rio que se tem uma concentração e uma dispersão bastante problemática. Muita gente de Parintins vem trabalhar em São Paulo porque é um mercado de trabalho, e o festival de Parintins acaba sendo uma grande vitrine”.
Conheça o desfile
1° SETOR – Surgimento das águas através da lenda Ayakamaé
“Abrimos o carnaval com a lenda das águas, que conta desse amor impossível do sol e da lua de forma indígena. É uma lenda muito ancestral da Amazônia e que está registrado em várias etnias linguísticas, e que pra gente é contando de forma oral, nossos antepassados contavam muito. A lenda fala que a lua, enamorada do sol, e eles não puderem ficar juntos porque iria ocasionar um grande cataclisma na terra. Mesmo assim esse sentimento brotou e se entregaram ao amor, e nisso aconteceu um cataclisma na terra, e nisso parte da terra queimou, a água evaporou e Tupã, Deus criador, teve que intervir e separou os dois. Tupã então lançou os dois como astros, um dia para reger o dia e outro para reger a noite, os mistérios do mundo que nunca dorme. A lua então chorou por longas noites e as suas lágrimas caíram sobre as cordilheiras dos Andes, derretendo o gelo e fizeram com que nascessem as águas do rio. Para que ela parasse de chorar, Tupã prometeu em alguns momentos do dia ela poderia ver o seu amado de volta, mas eles não poderiam viver mais juntos na terra e sim alguns momentos fora dela, que são os eclipses, e com isso o rio nasceu. Nosso primeiro setor fala do surgimento do rio pela visão indígena, isso com o sambista em transe para que ele pudesse enxergar tudo isso”.
2° SETOR – As águas da vida
“No nosso segundo setor gente começa a falar das águas que nasce, se torna grande e de todas as vidas que foi destruída pelo cataclisma da lua. Então começa a vir os peixes, as lendas, os jacarés, a gente começa falar de momentos históricos e lendários que se remetem as águas, como os Manaós que são heróis encantados no fundo do encontro das águas do rio negro e solimões. A gente encerra esse setor com um grande santuário de vida, se retendo a grande diversidade da Amazônia, principalmente a fauna e a flora”
3° SETOR – As águas da cura do verde coração
“Toda a consequência do cataclisma da lua com o sol acaba sendo lavada pelas águas do rio e o sol é curado. Então as plantas sagradas começa a nascer, e a gente começa a ver a mandioca, o guaraná, plantas sagradas que são remédios ou alimentos. A gente encerra o setor com um grande ritual de cura dos povo indigenas que fazem nas margens do rio, então são as águas que curam o verde coração. É o momento do nosso Ariê auê, onde todo mundo participa desse ritual de celebração em prol das águas”.
4° SETOR – Água da fé dos caboclos da Amazônia
“Então a gente continua navegando pelos rios através desse transe mágico e deslumbra a vida do cabloco Ribeirinho, que é um povo que se estabeleceu nas margens do rio, que pesca, que colhe, que trança os seus artesanatos que tem no rio a sua fé, eles fazem a romaria nas águas à São Pedro pescador, que é o grande padroeiro desse povo e dos navegantes. A gente encerra esse quarto setor com as águas sagradas do povo do Amazônia”.
5° SETOR – Águas do eterno amor do Sol e Lua
“A gente prepara o povo indígena pra deslumbrar o grande pôr do sol, o momento em que a luga encontra o sol e fortalece a certeza do amor que vive pra sempre. É o momento que o índio enxerga no horizonte os pássaros do pôr do sol anunciando que o entardecer vai chegar, e que o sol vi encontrar a lua. O sol vai descendo devagar como se ele fosse um grande mar, e os raios do sol adoram um grande rio, e é o momento em que a lua vai chegando com as penumbras da noite. Em instantes eles descobrem a certeza do amor, o rio segue para encontrar o mar. Nós da Mocidade Alegre rufamos os nossos tambores para homenagear esse rio que é um patrimônio mundial, não é só da Amazônia, ele acaba fertilizando um terço de todo continente sul-americano.
Ficha técnica
23 alas
5 alegorias – abre alas acoplados
2 elementos cenográficos
3.000 componentes