Por Aydano André Motta
O Carnaval de 2019 desenha seu desfecho num duelo entre Brasis – o rico, que constrói com firmeza sua competência; e o pobre, que materializa com criatividade seu arrebatamento. Está, assim, polarizada a disputa dos bambas, que encontrará a conclusão na tarde da Quarta-Feira de Cinzas, com a consagração de uma face da História, apresentada na Sapucaí em versões opostas e excludentes.
Vila e Mangueira (pela ordem) passaram com muitos méritos, e disputam o primeiro lugar pelo júri da Liesa. Mais do que o título, festejarão um jeito de enxergar o Brasil, fundamental, cada um a seu modo, para decifrar o país, seus pendores e mazelas. Portela e Tijuca credenciaram-se como alternativas, ainda que improváveis. Fora disso, tudo é surpresa – ou zebra.
No segundo dia muito melhor do que o primeiro, a maior emoção veio com a Mangueira, em mais uma obra magistral de Leandro Vieira. Sua “História para ninar gente grande” reverenciou fatos e personagens omitidos nos compêndios oficiais e bateu com força em figuras repetidas nos livros.
Valeu demais festejar Zumbi e Dandara dos Palmares; Chico da Matilde, o Dragão do Mar; Luísa Mahin e seu filho Luís Gama, abolicionista essencial; Zuzu Angel e sua luta pelo filho; os malês da revolta de Salvador; e, mais do que qualquer outro, Marielle Franco. Deu orgulho ver, enfim, a Princesa Isabel, os bandeirantes, Padre Anchieta, Duque de
Caxias e, claro, a ditadura militar de 1964 na vala comum dos vilões, por seus pecados amenizados pela narrativa eurocêntrica.
Uns e outros apresentados, em seus novos papéis, no ritmo de um dos grandes sambas de 2019, que passou empolgante pelo altar dos bambas. A Mangueira cantou feliz e, coisa rara, levou a plateia com ela, numa apresentação memorável.
A construção do Carnaval verde e rosa serve também de homenagem às figuras celebradas. A falta de recursos da obrigou Leandro – ele próprio com alguns meses de salário atrasado – a encontrar soluções mágicas. A escola passou pequena e cometeu seus pecados. Inevitavelmente perderá décimos preciosos no júri da Liesa, sempre mais
preocupado em punir pecados do que premiar qualidades.
(Por falar em tropeços, a jornalista Flávia Oliveira observou importantes contradições políticas na Mangueira. Em cima das alegorias, a predominância de brancos saltava aos olhos. E a escola convidou apenas a viúva de Marielle Franco, e não os pais, a irmã e a filha da vereadora assassinada. Nada disso está na regra do jogo carnavalesco, mas são deslizes paradoxais, dentro da proposta do enredo.)
A outra favorita ostentou a fantasia de rica para realizar apresentação quase impecável (ainda que conservadora). “Em nome do pai, do filho e dos santos, a Vila canta a
cidade de Pedro” celebrou Petrópolis com a exaltação dos personagens da família imperial, especialmente a Princesa Isabel, no outro lado da moeda histórica. As maiores e mais
bem-acabadas alegorias passaram pela avenida, lembrando, na opulência, o tempo áureo de Beija-Flor e Imperatriz. Os pais, a irmã e a filha de Marielle Franco saíram no carro mais progressista, o último, que criticava a escravidão.
O público da Sapucaí reagiu de forma diversa à apresentação dos herdeiros de Noel. Adotou o modo plateia teatral, admirando a obra do carnavalesco Edson Pereira,
do luxo que se espalhou também pelas alas, em fantasias muito bem realizadas. Mas a escola teve lá suas falhas – a maior, estourar o tempo na pista em um minuto, o que lhe
custará um décimo pelo regulamento. Para compensar o atraso, os componentes correram e os farejadores de erros escalados pela Liesa sob o nome de jurados devem cumprir seu papel.
No atual momento da vida nacional, ganha importância extra saber que Brasil será exaltado, no palco iluminado da folia. O resultado ultrapassará as fronteiras carnavalescas – para aumentar a importância da mais fundamental das festas.
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Outro desfile da segunda está consagrado como campeão dos corações carnavalescos. A reedição atualizada (por Jorge Silveira) de “E o samba sambou” da São Clemente
lavou a alma de quem vive a folia. Da virada de mesa no resultado do desfile aos escritórios de compositores, dos camarotes de música eletrônica – barbaridade que se
repetiu em 2019, sob a risonha subserviência da Liesa – ao carro inacabado por falta de verba, das celebridades aventureiras ao afastamento do público que gosta de samba para dar lugar aos turistas, a escola de Botafogo produziu espetáculo delicioso. A melhor apresentação dos últimos anos.
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Na mesma pegada crítica da Mangueira, a Tuiuti fez desfile cativante, a partir da história do bode votado para vereador em Fortaleza. “O salvador da pátria” consolidou o carnavalesco Jack Vasconcelos como um dos talentos emergentes da Sapucaí, além de oferecer samba e
evolução excelentes. O carro do bode dando um coice num tanque de guerra e as coxinhas com armas de brinquedo estão nas imagens inesquecíveis de 2019. Show de bola.