Por Aydano André Motta

Entre as muitas mazelas naturalizadas no julgamento do Carnaval, está o desprezo ao domingo. Basta sair a arrumação determinada pelo sorteio da Liesa para a tribo do samba – imprensa incluída – comentar a ordem como verdade absoluta. “A escola tal desfila segunda – favoritaça! Ótimo enredo da escola assim – pena que desfila domingo…” Reflexo do júri oficial e suas muitas idiossincrasias (para usar palavra gentil), inclusive a de usar pesos diferentes, de acordo com o dia, na hora de avaliar as competidoras.

Uma das muitas mazelas carnavalescas que precisa acabar.

Em 36 anos do desfile em dois dias, a campeã desfilou na metade final em inacreditáveis 84% dos carnavais. Em 2020, ainda pode ser diferente – mas o aguardado primeiro dia, com quatro candidatas ao título no zunzunzum pré-folia, teve desfiles bons e acidentados. Houve equilíbrio e emoção, faltaram apuro e cuidado, que viabilizam apresentações perfeitas.

Pela ordem em que se passaram, Viradouro, Grande Rio e Portela foram as melhores, numa noite de Mangueira sem brilho, Tuiuti, Estácio e, principalmente, União da Ilha decepcionantes. As três últimas vão à apuração ameaçadas pelo rebaixamento.

Na outra ponta da história, a Viradouro credenciou-se ao título com desfile excelente, o único que levantou a Sapucaí no domingo. A homenagem às Ganhadeiras de Itapuã, no enredo “Viradouro de alma lavada”, rendeu apresentação de belas alegorias e componentes empolgados sustentando o canto.

A passagem da vermelho e branco de Niterói, aliás, demoliu outra balela da festa: a do público frio no início. A paradinha de mestre Ciça no verso “Ó mãe, ensaboa, mãe” deu no momento mais empolgante da noite. O samba na voz do excelente Zé Paulo Sierra também enfeitiçou os componentes e o público. Mas o carro da ganhadeira, último a entrar, atravessou metade da Sapucaí apagado, garantindo a angústia niteroiense para quarta-feira. Mas pelo segundo ano, a Viradouro voltará nas Campeãs.

Assim como a Grande Rio, que está de às primeiras colocações, após dois anos catastróficos. O conjunto de excelências tricolores começou no melhor samba do ano e continuou no mais perfeito conjunto alegórico da primeira noite, trabalho espetacular dos estreantes Leonardo Bora e Gabriel Haddad. A turma de Caxias cantou muito para o homenageado Joãozinho da Gomeia, mas vai sofrer na apuração pelos erros decorrentes de dramáticos problemas de mobilidade nas primeiras alegorias, que precisaram ser reparadas em plena Sapucaí. A volta no sábado, porém, parece garantida.

Estará lá também a Portela, a que menos errou no domingo de carnaval. A espetacular águia hit-tech de Márcia e Renato Lage abriu desfile de ótimo nível da maior campeã de todas. Candidata a mais um título, a escola contou a história do Rio antes do Rio com fantasias e alegorias impecáveis e um samba dos melhores, cantada pelo melhor chão do Carnaval na atualidade. A porta-bandeira Lucinha Nobre apareceu com barriga de grávida, e “pariu” um bebê indígena ao fim de cada apresentação para os jurados. Tudo certo? Quase. Difícil driblar a dificuldade para mudar visualmente os setores, num enredo indigena. Talvez por isso, a azul e branco não tenha arrebatado.

Coube à Mangueira, no aguardado desfile da versão Leandro Vieira para a história de Jesus, produzir a imagem mais impressionante da noite – talvez do Carnaval todo: o Cristo negro gigante crucificado, no quarto carro. Foi o grande acerto da verde e rosa, que viu o bi mais distante pela apresentação fria. A primeira parte, baseada na história bíblica, passou diante do público impassível. O terço inicial não dialogava com o samba, sem menções a esse trecho da narrativa. Aliás, o hino, sem o estilo que mais agrada aos mangueirenses, foi cantado sem empolgação. Aqui, passa pela identidade, característica fundamental nas instituições carnavalescas – e a nonagenária Mangueira, a mais forte de todas as escolas de samba, tem cara absolutamente marcante.

Mas o entusiasmo inexistiu mesmo na passagem da Tuiuti. O encontro de Dom Sebastião com São Sebastião rendeu desfile no máximo regular, com o samba animado como ponto alto, especialmente no refrão. De qualquer jeito, a Tuiuti viveu seu pior ano desde 2018, quando foi vice-campeã.

Para quem carregava o carimbo de candidata ao rebaixamento antes de a festa começar, a Estácio fez o possível para escapar da sina (mais um cacoete carnavalesco que precisa desaparecer). No enredo “Pedra”, a carnavalesca Rosa Magalhães lutou, em seu 50º desfile, com a dificuldade financeira, mas construiu apresentação regular – melhor nas fantasias do que nas alegorias. O samba, acelerado, foi cantado pelos componentes, mas não cativou a plateia, resumindo a apresentação irregular.

Desastre mesmo foi a União da Ilha, e seu conjunto de acidentes e decisões erradas. O enredo de aguda crítica saiu gravemente ferido pelo mau gosto da narrativa. A exceção foi o abre-alas, a favela emoldurada pelos helicópteros da polícia, que chamou a atenção do público. Depois, só erros. As fantasias da bateria – uniformes escolares – eram uma ofensa.

O sequestro no ônibus, com arma na cabeça e simulação de agressões, não tem nada de carnavalesco. Laíla, o lendário diretor de carnaval, repetiu, pelo terceiro ano, a denúncia social campeã na Beija-Flor em 2018 e burocrática na Tijuca ano passado. Não que o Brasil não mereça – mas fica baixo astral demais. Para completar, o buraco gigantesco deve engolir a Ilha na direção da Série A.

Infortúnios carnavalescos dominicais.

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