Qual a relação do Carnaval das escolas de samba com a cidade do Rio?

As escolas de samba são formadoras da identidade do Rio. Vem delas boa parte do que o mundo celebra sobre ser carioca. Além disso, contam a história de personagens invisibilizados da cidade e do país. Têm inestimável importância cultural e comunitária. No Rio, o Carnaval deve ser questão de Estado – como saúde, educação, meio ambiente,
segurança — e não de governo. Um show que dura 16 horas, ao longo de duas madrugadas, com um elenco de 36 mil pessoas, que não se conhecem, não ensaiam todas juntas, não provam a roupa antes, não se falam nem recebem orientações antes de começar, e só se encontram na hora do espetáculo. Todas sabem magicamente se posicionar e o que fazer. E, em quase todas as 89 edições, de 1932 a 2020, esse espetáculo deu impecavelmente certo. É o desfile das escolas de samba do Rio. Se fosse inventado por alemães ou japoneses — povos incapazes de algo semelhante —, seria
celebrado em escala planetária. Aqui, sofre com desprezo e preconceito.

Nos últimos anos, muitas agremiações organizaram enredos patrocinados por empresas que aproveitaram o carnaval para vender seus produtos. Contudo, desde 2017 a Sapucaí foi tomada por enredos com críticas políticas contundentes. O que mudou?

Vários fatores. A crise econômica, a falta de transparência dos comandantes das escolas e do espetáculo, os ataques que a festa sofreu por setores intolerantes, como as igrejas neopentecostais. Mas é inconcebível que as escolas sofram qualquer tipo de tutela ou restrição na escolha de seus enredos. Os problemas do carnaval e das escolas de
samba não estão na avenida.

No último período houve um crescimento exponencial de manifestações de ódio, preconceito e intolerância à diferença nas ruas do Rio de Janeiro. Qual o papel do carnaval das escolas de samba na luta pelo direito à cidade em tempos de ascensão do fascismo?

A potência do samba carioca turbina mensagens de tolerância, alegria e aceitação. Inexiste
discriminado nas quadras e na Sapucaí. As reuniões nos endereços das escolas são eventos de paz, alegria e segurança. Nem mesmo a rivalidade na avenida – ou coirmãs, como ensina o dialeto dos bambas — impede a convivência pacífica em todos os ambientes. As escolas se visitam em tardes e noites de total harmonia. Ou, como ensinou Cartola: “Aqui se recebe inimigo, como se fosse irmão”.

Quais são os principais desafios para o Carnaval da Sapucaí? Qual o papel que o poder público deveria cumprir no Carnaval do Sambódromo?

As escolas estão diante do desafio da sobrevivência. Precisam de gestões profissionais e transparentes, que reconstruam a ligação da cidade com as grifes de sua maior festa. O poder público precisa fomentar a vida das escolas entre um carnaval e outro, além de cobrar profissionalismo e segurança para os trabalhadores de quadras e barracões. O
potencial é imenso, mas hoje está inexplorado. A Cidade do Samba e o Sambódromo — equipamentos públicos — precisam ressurgir em sua vocação, com samba e festa o ano inteiro.

Quais são os principais desafios para o Carnaval da Intendente Magalhães? Qual o papel que o poder público deveria cumprir no Carnaval da Intendente Magalhães?

A Intendente Magalhães é o lugar da paixão sem vaidade, do amor gratuito, da força comunitária do samba sem holofotes. Precisa do investimento público para sustentar a festa sem amarras nem ingressos, que garante a alegria e forma a identidade do povo pobre dos subúrbios. O poder público tem obrigação de sustentar os desfiles da Intendente!

Quais são os principais desafios para o Carnaval das Escolas Mirins? Qual o papel que o poder público deveria cumprir no Carnaval das Escolas Mirins?

As escolas mirins garantem a perpetuação da arte mais carioca. Ali se formam os futuros ritmistas, passistas, mestres-salas, porta-bandeiras, componentes. Outra festa que o poder público deve garantir com investimento direto e cobrança para as escolas apostarem em suas agremiações mirins.

Todo ano a prefeitura repassa verbas públicas para as ligas e para as escolas. Contudo, sempre existiu um desequilíbrio nos repasses: as escolas do grupo especial recebiam um valor muito superior às escolas das séries A, B, C e D. Enquanto isso, as escolas do grupo E sequer recebiam subvenção. No carnaval de 2020, a prefeitura mudou o formato e apenas repassou o subsídio para as escolas que desfilam na Intendente Magalhães. Como justificativa, a prefeitura alegou que somente haveria subvenções para eventos abertos ao público. Qual a sua visão sobre a antiga e a atual política de subvenção? Essa política de incentivo vem atendendo às necessidades do Carnaval enquanto manifestação cultural?

A gestão do bispo neopentecostal que encerrou em 2020 pôs em prática seu projeto de destruir o Carnaval. Aniquilar manifestações de alegria — e suas matrizes afro-ameríndias — está nos preceitos mais sólidos da denominação religiosa que o ainda prefeito obedece. Com ele removido do caminho, o sucessor deve ajudar financeiramente, mas como investimento. O dinheiro deve ser acompanhado de cobrança por profissionalismo, segurança trabalhista, conexão com a cidade.

Quais são as consequências do monopólio da transmissão dos desfiles?

É uma negociação comercial que precisa ser reformulada, porque as escolas ganham muito pouco. A prefeitura talvez possa atuar como mediadora para ajudar as agremiações a conseguir acordos mais vantajosos. O atual é draconiano com o povo do samba.

Quais medidas devem ser tomadas para garantir a segurança aos profissionais (jornalistas, carnavalescos, motoristas etc.) que atuam nos desfiles?

Fiscalização das estruturas que oferecem perigo, supervisão do credenciamento para limpar o excesso de gente na pista, criação de uma área para imprensa, como acontece nas arenas esportivas.

As quadras das escolas de samba muitas vezes são os melhores equipamentos culturais do bairro onde estão situadas. São locais de preservação da memória comunitária e promoção da cultura popular. Contudo, muitas se encontram em situação precária. De que forma o poder público poderia fortalecer esses espaços?

Está dentro do verbete “investimento + cobrança + fiscalização”. O futuro prefeito, quando esteve no cargo, reformou várias quadras, mas não cobrou pelo seu uso. Cai no mesmo caso da Cidade do Samba – as autoridades precisam exigir sua utilização inteligente ao longo do ano inteiro.

Como a pandemia afetou a vida dos trabalhadores e amantes do carnaval?

A situação dos trabalhadores é dramática. Como as escolas não são geridas com profissionalismo e eficiência, a crise da pandemia se abateu tragicamente sobre o setor. Muitos profissionais — com relações totalmente precarizadas — ainda estão passando fome, sem recursos para o mais básico. Muitas escolas naturalizaram o calote, deixando simplesmente de pagar seus profissionais – aí incluídos cantores, carnavalescos, mestres de baterias, mestres-salas, porta-bandeiras. De novo: o poder público precisa socorrer essas pessoas, mas cobrando das escolas atitude mais ética e profissional.

Quais os principais desafios para o próximo carnaval?

Antes do Carnaval, é necessária ajuda urgente, imediata, aos profissionais que constroem a festa. O prefeito eleito tem de ser cobrado na primeira hora para viabilizar o socorro. O desfile será consequência. A ajuda urgente é para quem está passando fome.

* Por Aydano André Motta – Entrevista publicada no Relatório da Comissão Especial do Carnaval da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro.

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