Idealizado pela Associação Recreativa de Diretores de Harmonia das Escolas de Sambas do Estado do Rio de Janeiro (ASSORDHESERJ), em parceria com a Federação Nacional de Escolas de Samba (FENASAMBA,) o “Segundo Encontro Nacional dos Diretores e Diretoras de Harmonia” também teve em uma de suas mesas um importante debate sobre os rumos que o julgamento do quesito Harmonia tem tomado nos últimos anos. Com a perspectiva do carro de som ser julgado, o que já acontece de forma oficial em alguns carnavais espalhados pelo Brasil, o encontro contou com a participação de alguns destes cantores e outros profissionais ligados à função. Wantuir, voz oficial da Porto da Pedra, apresentou o seu descontentamento e o seu espanto pelo fato do julgamento dos carros de som está cada vez mais rígido, enquanto as condições de trabalho oferecidas no carnaval nem sempre têm sido as melhores.
“A gente fica surpreso a cada ano que passa. Nos meus mais de 30 anos de carnaval, eu estive ano passado na primeira reunião sobre Harmonia na Liga, com os jurados, e eles nos propuseram a passagem de som que já existe em São Paulo há mil anos. Mas, quando eu cheguei na Avenida para cantar, tudo aquilo que foi feito anteriormente, que nós passamos o som em outro dia, não tinha nada do que havia sido preparado. O meu carro de som estava totalmente desfigurado, e tivemos que repassar o som tudo de novo. A gente se sentiu mal profundamente. Nada disso foi passado para os jurados. Em relação ao nosso julgamento, nós viramos um bode expiatório. Na reunião que nós tivemos, o jurado disse que estão para ficar de olho em quem está cantando bem. Na nossa classe hoje dos intérpretes nós temos registrado mais de 180, mas nós sabemos bem que somos muito mais. A gente está triste com o julgamento que vem sendo feito, inclusive em relação ao que teve de mudança no carnaval deste ano no Rio de Janeiro, nunca existiu, a dança de cadeiras foi muito grande, mas foi por causa deste julgamento. Nós gostaríamos que o julgamento do carro de som fosse como quesito, e não desse jeito que está sendo feito”, entende o cantor.
Preparadora vocal muito respeitada no mundo do carnaval e atualmente trabalhando junto de Wantuir na Porto da Pedra, a fonoaudiólaga Ionalda Belchior, questionou a forma como a avaliação tem sido feita em relação aos cantores, desrespeitando, inclusive, segundo a profissional, o que é a diretriz para o julgamento do quesito harmonia.
“É com muita preocupação que a gente vê essa questão da avaliação. Eu como fonoaudióloga especializada em samba, em voz de intérprete de escola de samba, eu fico muito preocupada quando eu vejo na justificativa que o meu intérprete fez caco demais, que o meu intérprete estava desafinando, semitonando. E quando a gente vai ver o conceito de harmonia que basicamente é o mesmo no Brasil inteiro, ele fala que harmonia é o entrosamento do canto produzido pela escola com o ritmo proposto pela bateria. É a clareza do canto de toda a escola, em todos os trechos do samba, por todos os setores, durante todo o período do desfile. Mas, quando você vai ler, fala sobre o carro de som, sobre o intérprete. Em algumas cidades, o carro de som não está inserido neste quesito, não claramente pelo menos, em outras sim”, explicou Ionalda.
Vice-presidente da ASSINCARJ (Associação dos Intérpretes do Carnaval do Rio de Janeiro), o cantor oficial da Unidos de Padre Miguel, Bruno Ribas, foi outro a questionar o julgamento realizado para o quesito e contestou também a capacidade que os julgadores têm para julgamento do trabalho realizado por um carro de som.
“Tem várias situações que estão erradas dentro do carnaval. Já que a gente falou de julgamento, eu acho que para eu julgar bateria, eu tenho que conhecer bateria, para eu julgar harmonia, eu tenho que conhecer harmonia. Isso independente da minha função fora do samba. Porque às vezes o cara é médico, mas ele acompanha carnaval. Mas, não é o que acontece normalmente entre os jurados. O que me deixa indignado, muito chateado, é o escritor fulano de tal julgando bateria, julgando harmonia. O cara dá 9,5 em uma escola de samba dizendo que a voz do cantor estava em desalinho com o tamborim do naipe tal da bateria”, manifestou o cantor.
Alexandre Belo, intérprete do carnaval de Porto Alegre há 38 anos, questionou o fato dos jurados muitas vezes em seu julgamento não respeitarem a tradição que existe no samba-enredo e as características presentes e inerentes às vozes oficiais.
“Quando a gente ouve que a jurada cita que o intérprete não fazia o refrão principal, em Porto Alegre, tinha um julgamento há uns 15 anos atrás que o intérprete não poderia parar de cantar, ele poderia não fazer as chamadas, mas não poderia parar de cantar. Parou de cantar vai ser canetado. De repente, ele tinha que fazer uma chamada, e é característico, o samba-enredo é uma música completamente diferente de todas as outras, até porque eu fiz canto lírico. O samba-enredo é diferente. É outra música. E essas características tem que ser respeitadas, porque se eu tirar a característica da chamada, imagina o que vai ser. Eu fiquei pensando sobre a reunião que vocês tiveram (reunião dos intérpretes do Rio de Janeiro com os julgadores) e a jurada disse que não gostava de caco. Eu imaginei o Carlinhos de Pilares se revirando no túmulo. Porque o grande mote dele era o caco. E era um grande intérprete, fez história no carnaval do Rio de Janeiro, no carnaval do Brasil. A música samba-enredo é completamente diferente de cantar, de julgar, e tem características que tem que ser respeitadas porque fazem parte do nosso carnaval das escolas de samba”, apontou o artista.
Em seguida, Bruno Ribas também expressou o seu descontentamento com a forma que muitas vezes os julgadores e outras entidades avaliam o carnaval sem se atentar para suas peculiaridades e tradições.
“Eu estou no carnaval há 46 anos, eu nasci no carnaval. Quando eu cheguei, o carnaval já era isso que eu encontrei. As pessoas estão insistindo em mudar algo que tem uma razão para acontecer. Além de raiz, tem fundamentos. Eu fiz algumas declarações há um tempo atrás falando sobre me afastar do carnaval, sair do carnaval. Fui muito chamado a atenção. Foram muito incisivos nisso. Mas, o que me leva às vezes a tomar esse tipo de atitude é a falta de respeito das pessoas com essa entidade. Tem muita gente pensando que o carnaval é qualquer coisa, não tem nenhum sentido. E o carnaval tem todo um fundamento”.
Já para o vice-presidente da Uesp (União das Escolas de Samba Paulistana), Demis Roberto, o carro de som deveria se constituir sim em um quesito diferente da harmonia e do samba-enredo, mas com a necessidade de que o julgador seja alguém preparado para avaliar os cantores.
“Eu sou favorável ao julgamento do carro de som. E não estou dizendo que eles estão julgando certo, ao contrário, estão julgando errado. Mas, é importante o julgamento incluir o carro de som, eu só acho que aqui no Rio, diferente de São Paulo, e lá nós também erramos, eu acho que o carro de som tem que ser um quesito próprio. Tirando ele do quesito harmonia. Lá, em São Paulo, por exemplo, não julgava carro de som, passou a ser julgado esse ano, brigamos muito para não entrar no quesito harmonia, queríamos criar um quesito próprio, ficou aquela briga danada, acabou entrando no quesito samba-enredo. Só que é o nosso primeiro ano. A gente não sabe ainda como será julgado. Na minha visão do quesito, do julgamento, eu não tenho capacidade de julgar se a execução do carro de som de uma escola está ou não certo. Eu, Dênis, não consigo julgar. Porque eu não sou músico. Eu não consigo discutir com o intérprete se ele está chegando na nota, ou não está. E, nenhum julgador do quesito harmonia, e do quesito samba-enredo tem essa condição. Porque o preparo para julgar a harmonia é uma coisa, o preparo para julgar samba-enredo é uma coisa, o preparo para julgar carro de som é outra. E aí que está o problema”, entende o vice-presidente da UESP.
Por fim, mestre Mercadoria, grande lenda do carnaval paulistano, em uma fala rápida, mas bastante contundente, questionou a propriedade que os julgadores têm para avaliar os quesitos, já que muitas vezes não tem ligação nenhuma com o universo do samba, das escolas, não conseguindo perceber sua tradição e seus fundamentos.
“Porque as nossas escolas não são julgadas pelos sambistas? Porque são julgados por intelectuais? Acredito que os presidentes das escolas têm medo de que os sambistas venham a julgar, porque eles vão julgar direito”, concluiu o diretor de harmonia.
O evento contou com a participação de diversos integrantes de harmonia do carnaval carioca e de diferentes cidades e regiões do Brasil como Porto Alegre, Vitória, São Paulo, Valença e ABC Paulista. Acompanharam o evento, também, personalidades importantes, como o síndico da Passarela do Samba, Machine e o formador de casais de mestre-sala e porta-bandeira, Manoel Dionísio.