Em pouco mais de três horas de conversa com alunos do Instituto de Artes da Uerj e simpatizantes do assunto, os carnavalescos Leandro Vieira, Leonardo Bora e Jack Vasconcelos, entre outros temas, falaram sobre a sua relação com os enredos. O quesito de alguns anos para cá ganhou um peso muito maior em relação a toda a organização dos desfiles. O objetivo do Seminário Escritas do Carnaval é o de formar estudantes do Instituto de Artes da UERJ para realizar uma cobertura crítica e ensaística do Carnaval 2024 na Revista Caju.
Na mesa, foi realizado o corte específico de 2018, considerado pelos organizadores do evento como um momento de guinada narrativa para os enredos. Ao falar da organização do desfile vice-campeão de 2018, Jack Vasconcelos contou um pouco de como conseguiu chegar a um entendimento de qual deveria ser o fio condutor do enredo “Meu Deus, Meu Deus.Está extinta a escravidão?”.
“A gente (a escola e o carnavalesco), anos antes daquele desfile, tinha chegado à conclusão de que íamos mudar o foco dos enredos. A ideia era fazer enredos que nos representassem, não ia rolar patrocínio neste grupo (na época na Série Ouro), vamos fazer o que a gente acredita então. Para todo carnavalesco isso é música. O que a gente quer é trabalhar em uma boa história. A gente quer passar o ano feliz. A gente queria trazer uma história bacana e uma história que botasse a gente para pensar. O processo de pesquisa desse enredo foi muito intenso para mim. Esse era um enredo que acabou me levando para um lado e para outro. Vinha muita coisa diferente. E já no final, mais ou menos uma semana para apresentar o enredo, eu me deparei com um livro chamado ‘Elite do Atraso’, e esse livro foi o que me fez costurar todo o raciocínio. Aí que eu pensei, ‘cara como eu sou burro’, a resposta estava na minha cara o tempo inteiro. E eu sei disso, porque eu sou uma pessoa pobre (risos). Você sabe que você faz parte desse jogo. Não há essa separação que eu estava dando na pesquisa. Eu estou dentro desse jogo. Eu senti que tinha perdido semanas tentando amarrar uma coisa que não ia encaixar. Meu olhar sobre a questão estava errada e isso me ajudou a crescer como pessoa. Tudo é uma relação de poder,tudo é uma relação de dinheiro”, entendeu o profissional.
Uma questão importante tratada também por Jack foi a relação intrínseca que o artista entendeu que precisava estabelecer entre a narrativa apresentada e os materiais e identidade visual que o desfile precisava ter.
“Para apresentar essa relação de submissão, aprisionamento eu criei nas fantasias braços sem cérebro, pensei em alimentar essa máquina. Trouxe equipamentos de aprisionamento, entendi que o enredo deveria ser metálico, porque o metal é o que aprisiona. Então ele que foi o condutor desse desfile, a parte visual.A ideia era trazer a sensação de aprisionamento. Não poderia usar nada confortável de se ver. Não queria que chegasse a um mau gosto, claro, mas queria que tivesse uma dureza clássica para quem estivesse assistindo”, explicou Jack.
Já o carnavalesco da Imperatriz Leopoldinense, Leandro Vieira também comentou um pouco sobre esta relação entre narrativa e identidade visual, frisando que tudo apresentado para um desfile pode ter significado.
“Essa ideia de enredo eu sempre penso e sempre falo que o material conta enredo. O enredista é aquele que enreda, vem de rede e você precisa montar essa rede que transmite, que comunica. Sempre acho que tecido conta enredo, a linha escolhida conta enredo, ter paetê, não ter paetê conta enredo. Tudo conta enredo. O sapato conta enredo. O formato de uma cabeça conta enredo. Acho que o grande prazer de quem trabalha com a criação é de se entregar a isso, a esse caminho, que é cheio de subjetividade. A decisão da dureza ou delicadeza, o que transmite a delicadeza para um, o que transmite dureza para outros está na escolha dos signos e artigos”, avalia o profissional.
Leandro usou como exemplo o trabalho apresentado na Mangueira em 2018 com o enredo “Com dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco” estabelecendo esta relação entre a escolha de materiais para o enredo utilizado.
“Sobre especificamente o carnaval de 2018, tinha muito essa ligação com o carnaval da rua e eu tinha um momento de fantasias que eu acho particularmente muito bonitas que era o momento de construção de fantasias feitas com artigos muito ordinários, de serem artigos que as pessoas vão usar para fazer uma fantasia para ir no bloco de carnaval, usam o que tem em casa. Nas fantasias da Mangueira deste ano tinham toalhas de banho, tecido de toalha de mesa, tnt, o tecido mais vagabundo que tem. E eu fiz isso com a vontade de juntar o retalho, o remendo. O enredo está muito atrelado ao material”, acredita o carnavalesco.
Também apresentando sua visão sobre o trabalho nas escolas de samba, Leonardo Bora lembrou de como a construção do enredo e sua parte visual nem sempre acontecem de forma linear como outros tipos de arte e de construção narrativas.
“Somos narradores e a construção narrativa de um desfile de escola de samba que é uma obra de arte e também um ritual, um espetáculo, e é algo que deve ser julgado, esse processo de construção da narrativa é muito complexo. Não é um trabalho exato que fica restrito a uma sala de criação. A gente leva o enredo para todo lugar. No banho eu começo a pensar em ala, e fazer lista. Essa coisa da materialidade, dos materiais é fundamental. Texto também tem a ver com tecido”, entende o carnavalesco.
Leonardo lembra que em 2018 na Cubango, devido a escassez de dinheiro, o artista e sua dupla Gabriel Haddad, se utilizaram bastante das características do enredo e da obra do artista Bispo do Rosário para fazer um carnaval criativo, cheio de ressignificados como o enredo pedia.
“No caso deste carnaval de 2018 era fundamental, porque era o que a gente tinha. Tecido a gente tinha, ainda que os mais puídos das lojas. Agora, placa de acetato não tinha. Tinha só uma ala que eram anjos, os que conduziram o Bispo por Botafogo. Era o São Miguel da Igreja de Santo Inácio. Era uma coisa muito básica porque não tinha como fazer formas. Tinha que negociar com alguém que fazia para outras escolas. Dava uma dor de cabeça muito grande. Vários elementos que a gente utilizava nas roupas eram semi prontos como o Bispo fazia, e colocava na roupa, ou era costurado. E tinha uma coisa que era a questão do acabamento. E a gente tem um terminologia no julgamento do nosso trabalho se uma coisa está bem acabada, mal acabada. E nesse caso no trabalho do Bispo a gente discutia sobre isso o tempo todo. Tinham roupas que não tinha acabamento em parte porque não tinha dinheiro, em parte porque a gente não queria. Mesmo que pudesse ter”, conta o carnavalesco.
Leonardo Bora, que é professor na UFRJ no Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras, encerrou o debate também falando sobre a relação entre a academia e o samba e como ambos podem estabelecer uma relação importante no que tange a arte e a cultura.
“Acho que a contribuição começa com a participação, entendendo a importância de abrir esses espaços e quebrando visões pré concebidas. Visões preconceituosas com escolas de samba e também com esses espaços acadêmicos. As coisas são muito maiores e muito mais complexas do que pode parecer em um primeiro momento. Me incomoda bastante, às vezes uma tentativa de ou olhar escola de samba como algo exótico, primitivo, simples, que pode ser arte dependendo de quem está fazendo, que é uma visão racista, elitista, tudo de ruim. Da mesma forma que causa para mim um incômodo de simplesmente creditar o problema porque o carnaval hoje não tem uma transmissão televisiva de sucesso como nos anos 80. Ou a receita pelo academicismo dos enredos. Isso para mim não quer dizer nada. Se a comunidade da escola está pulsando , está com um grande samba, se o desfile aconteceu, se as fantasias são bonitas, deu certo. E aí se alguém quiser mergulhar em uma pesquisa um pouco mais elaborada no sentido acadêmico, beleza”, finaliza o artista.