Por Sérgio Almeida Firmino

Este artigo deseja pormenorizar uma atividade em meio aos desfiles das Escolas de Samba na Marquês de Sapucaí, da qual tornou-se uma missão hereditária, em respeito à ancestralidade recente, cuja, ainda ocorre, há mais de meio século, em um espaço de pertencimento natural, a partir da figura lendária de José Geraldo de Jesus (1920-1997), o Candonga. Segundo o jornalista José Luís Azevedo eex-funcionário da Riotur, os jornalistas tinham um local de encontro, ali na rua Salvador de Sá, rua que cruza a Marquês de Sapucaí ou Passarela do Samba.

De fato, bem no local onde ficava a cabine da TV Globo e TV Manchete, José Luís Azevedo relata, emocionado, que assistia do seu local de encontro de jornalistas e comentaristas como: José Carlos Rego, Albino Pinheiro, Fernando Pamplona, Manoel Alves, Darcy Moreira, enfim, os jornalistas que atuavam na transmissão do Carnaval da cidade. Esses jornalistas presenciaram acontecimentos maravilhosos na Marquês de Sapucaí, esses acontecimentos ou novidades, não foram escritos, eram divulgados entre eles, ou no mundo do samba. Um desses relatos, talvez o mais interessante, era sobre a presença de um funcionário da Riotur, apaixonado pelas Escolas de Samba e pelas baterias das Escolas de Samba, José Geraldo de Jesus, o Candonga, como era chamado, que estacionava seu próprio carro, no cantinho do segundo recuo das baterias. Esse manejo de Candonga já era conhecido bem antes dos desfiles serem realizados na Sapucaí, na verdade, é desde a avenida Presidente Vargas, ou mesmo na avenida Antônio Carlos, onde o sambista, por sua comodidade, estacionava dentro da Passarela do Samba.

A partir de 1984, com a construção em cimento armado da passarela do samba, o segundo recuo das baterias ganhou notoriedade singular. Para o jornalista Haroldo Costa, amigo pessoal de Candonga, ali tornou-se “o Feudo do Candonga”. De fato, sobre o Mestre Candonga, precisa-se de um livro inteiro para relatar sua vida, da qual merece ser apresentado ao público.

Leda Maria Martins teria argumentos acadêmicos para pontuar Mestre Candonga, em sua “Afrografias da Memória”. Com efeito, Mestre Candonga nasceu em Santo Estevão, na Bahia, em 05 de dezembro de 1920. José Geraldo de Jesus veio para o Rio de Janeiro com 13 anos de idade, sem nada nas mãos, tentar a sorte na cidade do Rio, e foi morar no bairro do Estácio.

Candonga, ainda muito jovem, reconhece a vida boêmia efervescente e mundana que o cercava. Escolhe a Marinha do Brasil para servir à pátria e torna-se marinheiro foguista de caldeira de navio, e logo em seguida é designado para trabalhar no Palácio do Catete, tornando-se homem de confiança do Presidente Getúlio Vargas.

Sua adoração pelo samba aproximou Mestre Candonga do Jogo do Bicho e da contravenção, chegando a trabalhar para a mãe de Castor de Andrade, seu futuro padrinho de casamento com Dona Aparecida de Jesus. Esses relatos foram colhidos do próprio Candonga. Mestre Candonga amava incondicionalmente o Carnaval, sobretudo as Escolas de Samba. Ele era a figura marcante na Passarela do Samba, e seus 160 quilos, vigor físico adquirido quando jovem nas lutas de boxe, junto à academia do seu amigo Santa Rosa – aliás, foi Santa Rosa que o apelidou de Candonga. José Luís Azevedoassevera em conversa, com requintes de detalhes, o domínio espacial de Candonga na Sapucaí, e sua relação com todas as Escolas de Samba, principalmente as gigantescas baterias e seus ritmistas.

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Foto: Instituto Cultural Candonga

Após a morte do jornalista Darcy Moreira, a LIESA cria a sala de imprensa Darcy Moreira, no Setor 1, onde o grupo de jornalistas que antes reunia-se à frente do segundo recuo de baterias, passa a frequentar a sala de imprensa na Sapucaí. No entanto, todos os jornalistas, fotógrafos, políticos e outros credenciados para permanecerem na pista de desfiles, sabiam que Candonga guardava em seu porta-malas do seu carro estacionado dentro da Sapucaí, algumas cervejas, muita água para os seus ritmistas e uma bebida especial chamada Cravo Escarlate, que, segundo o Candonga, era uma bebida afrodisíaca. A história que ele contava é que seu bisavô era reprodutor escravo de senzala e como trabalhava na fazenda de cana de açúcar, sua função era de reprodutor, ou seja, gerava filhos para trabalhar na fazenda. Candonga contou que seu bisavô africano conhecia as ervas da mata, reuniu algumas ervas e as mergulhou em algo semelhante a aguardente. Esta mistura de ervas foi deixada descansando por algum tempo em infusão, e assim ele criou um tônico especial. O reprodutor bebia este tônico regularmente para manter-se ativo sexualmente e reproduzir. Segundo Candonga, este bisavô escravo teria mais de 120 filhos. Ele mesmo mestre Candonga dizia ao vento que tinha 47 filhos.

Os dirigentes das Escolas de Samba, assistindo o desenvolvimento dos ritmistas após beberem da água servida por Candonga, resolveram também parar com suas baterias à frente da TV Globo e TV Manchete, ou melhor, no segundo recuo das baterias, para receberem a água de Candonga. Em seguida, além de pararem suas baterias de suas Escolas de Samba, passaram a conduzi-las para dentro do espaço vazio entre os setores 09 e 11, também estacionamento do carro do Mestre Candonga. O chamado recuo das baterias, nasceu através da ação humanitária de Candonga em servir água na boca dos ritmistas.

Segundo o jornalista José Luís Azevedo, que teve várias funções no Sambódromo, além de diretor de operações da Riotur, não há no regulamento da Liesa, qualquer menção de obrigatoriedade em adentrar com as baterias das Escolas de Samba, no chamado recuo das baterias, ou atualmente reconhecido como Espaço Candonga. Entenda-se sobre a ação, de servir água na boca dos ritmistas, esses artistas, batuqueiros ou percussionistas, marcando o ritmo contagiante das Escolas de Samba, que não podem parar de tocar seus instrumentos. Assim Candonga servia na boca de cada ritmista. Foi ideia do Mestre Candonga, que começou com a sua Portela, com a finalidade de dar uma sobrevida a todos os ritmistas, e que depois passou a servir a todos os ritmistas de todas as Escolas de Samba desfilando na Passarela do Samba Darcy Ribeiro ou Marquês de Sapucaí.

Mestre Candonga também era o Guardião da Chave da Cidade; em algum tempo remoto, o ex-segurança de Getúlio Vargas, criou uma chave de um artefato de madeira de um metro e meio e o cobriu de lantejoulas para simbolicamente abrir o Carnaval da Cidade. Criou uma chave, que seria para sempre a Chave da Cidade para uso no Carnaval no Rio de Janeiro. Candonga, sem saber, imortalizou esta cerimônia, que acontece em todo o Brasil. O prefeito recebe a Chave da Cidade e entrega ao Rei Momo para este, dar início ao Carnaval da Cidade. Os jornalistas Sérgio Cabral, Albino Pinheiro, Ferdi Carneiro, João Ubaldo Ribeiro, Fernando Pamplona, Ricardo Cravo Albin, enfim, um grupo seleto de amigos, todos entusiastas do Samba e do Carnaval do Rio, e em plena ditadura militar, ajudaram Mestre Candonga com esta ação. Candonga resolveu criar a chave, na premissa que o Carnaval da Cidade era aberto, mas não tinha uma chave. Maria Cristina Silva de Jesus (1959-2021) deixou em depoimento no documentário “Candonga, Cravo e Passarela”, da Boni Comunicações, ao asseverar que Candonga percebeu que sempre sumiram com a chave, assim resolveu, ele mesmo, fazer uma chave, que tomou para si a responsabilidade de guardá-la para o próximo Carnaval. E, desde então, esta cerimônia acontece há muitos anos, tendo iniciado em 1964 – exatamente no início da ditadura militar no Brasil.

Candonga não está mais entre nós. Esse baiano de Santo Estevão faleceu em 27 de março de 1998, no entanto, o ethos deixado como legado das ações absolutamente simples de Candonga, este afrodescendente, suscita reconhecer esses símbolos orientados por Maria Leda Martins, como sendo ecos da “Afrografia da Memória”, acentuadamente, intrínseca tanto no contar e repassar essas verdadeiras histórias, desenvolvidas na oratória, ano após ano, concebidos com tamanha beleza estética coloridas, fortes culturais.

O raciocínio sobre os códigos e o ethos estão impregnados não apenas na figura mítica de José Geraldo de Jesus – o Candonga -, mas também nas suas ações culturais, além de todo universo espacial que a Sapucaí congraça. A alta capacidade do povo preto, trazido forçosamente para o Brasil, e estabelecer a alteridade, envolvendo-se na cultura dos povos tradicionais e caucasiana, tornou a etnia preta empoderada culturalmente na sua densa historiografia. O poder de ajustamento negro, o uso sistemático da alteridade, o pertencimento, suscita o surgimento de outras Culturas, fortalecendo as etnias e sua história. A mistura étnica ajudou a desenvolver nuances de outras culturas, sociais e de fato, de aspecto comportamental.

O fenômeno ocorrido nas Américas no encontro das três etnias foi marcado por violências brutais. No entanto, fato histórico relevante, agravado pelo rentável comércio escravo, que perdurou por três séculos no Brasil. Com efeito, a violenta intromissão do conquistador, a fatalidade da diáspora africana e logo após a tentativa do aniquilamento da outra cultura, mitigou o desenvolvimento da rica cultura brasileira. Ainda assim, histórias reais vividas no campo santo Apoteose, na rua Marquês de Sapucaí, confirmam a necessidade de se estudar a relação memória, resistência e o pertencimento, assim como o poder da textualidade oral afro-brasileira, de fato, espaços preservados na memória, no entanto, também construídos fisicamente e no inconsciente da ancestralidade preta. Candonga, além de sambista, foi um mensageiro de intuições do passado, não escritas, não lidas, um ator que desempenhou seu papel na rica construção do conhecimento, embora não científico, porém de aspecto epistemológico, intrínseco em cada movimento cultural, ele assume, inconscientemente ou não, com extrema felicidade a harmonia de ser negro.

Ao concluir, torna-se muito importante a preservação desses locais, movimentos ou temas culturais, que fazem parte da nossa Cultura. O Espaço Candonga é apenas um pedacinho de chão na Marquês de Sapucaí, protegido por fazer parte do grande palco, do maior espetáculo do planeta Terra. No entanto, de enorme teor cultural, antropológico, histórico, de pertencimento, de inclusão, representante vivo do ethos brasileiro.

O Espaço Candonga nasceu do amor incondicional de um sambista, loucamente apaixonado pela sua cultura, reverenciado por todos que beberam e até hoje bebem de sua água, mas também, por qualquer um do povo, que é servido pela cultura gerada naquele espaço. Portanto,Candonga, sua Caravan laranja, seu Cravo Escarlate, sua Chave da Cidade, são símbolos muito importantes, intocáveis, imutáveis, da afrografia da nossa memória.

Sérgio Firmino
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@sergioalmeidafirmino
Assessor Especial de Economia Criativa do Carnaval pela Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa.
Presidente da Federação da Indústria Criativa Cultural do Carnaval do Estado do Rio de Janeiro – FICCCERJ.
Diretor Conselheiro Pró Bono do Instituto Cultural Cravo Albin.
Agradecimentos: aos jornalistas José Luiz Azevedo, Haroldo Costa e Ricardo Cravo Albin.

Referências
Martins, leda Maria (1997). “Afrografias da Memória: O Reinado do Rosário do Jatobá”. São Paulo: Perspectiva Belo Horizonte: Mazza Edições 1997 (coleção perspectiva).
Sodré, Muniz (1942).“A Verdade Seduzida”. Rio de Janeiro. DP&A 2005, 3ª Edição.
Sodré, Muniz (1942). “Samba, O Dono do Corpo”. 2ª Edição, Rio de Janeiro (1998).
Araújo, Hiram (1991): “Memórias do Carnaval”, Rio de Janeiro: Oficina do Livro, Carnaval-História- 2 Rio de Janeiro (Cidade) Escolas de Samba – História.
Leopoldina, J. S. (1978). “Escola de Samba, Ritual e Sociedade”. Petrópolis: Vozes.
Pamplona, Fernando (2013). “O Encarnado e o Branco”. Nova Terra.