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Milton Cunha: “O texto confessional de Vicente nos leva ao encontro de uma visão pessoal sobre os diálogos que o samba estabelece com a cidade. A partir de um memorial o autor nos leva a seu olhar sobre as possibilidades da escola de samba e suas aplicações no dia a dia do em torno das quadras e barracões. Esses textos reunidos mostram um painel de interesses e preocupações vontades dos autores. Uns mais acadêmicos, outros mais emocionados e pessoais, mas todos reunidos sob um guarda-chuva: O amor pelo samba e a vontade de expressar a opinião sobre ele”.

Me chamo Vicente de Souza Azevedo Lima. Sou professor de Artes Visuais, formado pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós graduado em Figurino e Carnaval pela Universidade Veiga de Almeida. Atuo junto aos Ensinos Fundamental I e II e Ensino Médio nas Redes Públicas Municipais do Rio de Janeiro e Cabo Frio. No Rio de Janeiro, leciono no bairro de Santa Cruz na Zona Oeste da cidade. O bairro mais distante do centro, refém da brincadeira jocosa: lugar aonde até o trem chega cansado.

A distância física quase sempre perfura, marca a alma e o destino de tantos alunos promissores que pelas minhas mãos e olhar passam todos os anos. Há tempos sou refém de uma inquietude que já me trouxe problemas.

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Acredito na escola como um par de asas e adoraria poder permitir que os meus alunos provassem a sensação do voo livre, lépido, fagueiro, sem amarras, sem gaiolas, sem limites, sem a sina que a distância física, sempre ela, impõe.

Em lugares onde a distância física é presente, é latente a ausência do poder público. A precariedade nos serviços ofertados, as oportunidades cada vez mais remotas, a escassez de horizontes, servem como premissa para que líderes religiosos de fala mansa e índole duvidosa, como o prefeito que nos jogou no abismo recentemente, se estabeleçam como fonte de saber quase sempre distorcido e inoportuno. Bem como, pavimentam a estrada para que poderes paralelos se enraízem, tornando essas áreas, reféns de sua ação nefasta, que involuntariamente impõe destinos e jornadas.

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Vivemos nos últimos quatro anos a demonização do carnaval. O discurso raivoso e maciço inúmeras vezes veiculado pelo ex alcaide Marcelo Crivella, implantou em uma parcela significativa da população, resistência a uma festa que nos exibe para o mundo e que tantas divisas e desdobramentos é capaz de nos trazer.

Se há distorções na distribuição de verbas que fomentam a festa, que se corrija como clama a massa. O que não pode ocorrer, é a marginalização de uma festa que é fonte de sustento para inúmeros trabalhadores que ajudam a lhe dar voz, brilho e alma ano após ano.

Festa capaz de revelar talentos, modificar destinos, oferecer oportunidades de trabalho e formação profissional. Festa que pode recrutar de maneira produtiva e assertiva inúmeros meninos e meninas que por morarem em áreas carentes, distantes, sucumbem ao cansaço da procura, seduzidos pela facilidade do tráfico, pela letargia imposta por entorpecentes, pelo ganho imediato do furto que por vezes lhes rouba a própria vida.

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Infelizmente, ao longo desses anos de magistério, vi muitos talentos natos desperdiçados pela falta de oportunidades. Certa vez, em uma das minhas aulas nos dias que antecedem a folia momesca, em um bate papo informal com os alunos sobre o carnaval, os blocos, as escolas de samba, seus sambas, seus enredos, recebi com profunda tristeza o total desprezo dos alunos de Santa Cruz, pela agremiação que defende bravamente seu bairro todos os anos. Alguns dos alunos, sequer sabiam da sua própria existência.

Pouco antes da pandemia que se estabeleceu e nos assolou a todos em março de 2020, pensei na possibilidade de uma espécie de intercâmbio entre à agremiação Acadêmicos de Santa Cruz e as escolas públicas do entorno, garantindo a sua sobrevida como instituição cultural relevante no cenário carioca, a fim de corrigir de uma vez por todas tamanha distorção.

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Uma festa como o carnaval, necessita urgentemente que as suas raízes sejam preservadas e celebradas. Todas as agremiações carnavalescas precisam estar em plena sintonia com seu povo de origem, cintilando em suas localidades como um Doce Refúgio, parafraseando a canção do Grupo Fundo de Quintal.

Se o samba nos descreve, ele precisa recuperar seu espaço no coração das comunidades em consonância com o funk também oriundo do seu dia a dia. O avanço de um ritmo necessariamente não inviabiliza o outro.

Uma agremiação carnavalesca como a Acadêmicos de Santa Cruz com seus 61 anos de história, não pode ser ignorada por seus pares, jamais. Escola que brigou desde o seu primeiro dia para manter-se de pé, pois era tida como a escola de samba representante da Zona Rural do Rio de Janeiro. Fato este que se traduzia em preconceito por grande parte da mídia e de sambistas de outras escolas. Ainda assim, em seu quarto ano de desfiles no Rio de Janeiro, já figurava entre as grandes do carnaval carioca. Feito que se repetiria por mais oito (08) vezes.

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O Rio tal qual o samba, agoniza, mas não morre.

Em um cenário pós pandemia, não é possível soerguer a economia, ignorando Momo por mais quatro (04) anos.

Sigamos todos Jackson do Pandeiro em seu chamamento universal: A Ordem é Samba. Talentos uni-vos, já não há mais distâncias.

Voemos todos “malandramente” rumo à avenida mais charmosa do Brasil. Afinal, como decretou em 1993 a Rosa que floresceu como maior campeã desta avenida:

Marquês que é Marquês
Do Sassarico é Freguês!!!

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