Sexta escola a desfilar no sábado de carnaval, a Águia de Ouro enfrentou, tal qual em alguns dos ensaios técnicos da agremiação, muita chuva para se apresentar no Sambódromo do Anhembi. As condições climáticas acabaram prejudicando alguns quesitos, é bem verdade, mas a instituição do bairro da Pompeia, na Zona Oeste paulistana, deixou ótimas impressões estéticas, sobretudo no primeiro setor. Com uma comissão de frente marcante, boa execução do samba-enredo e um destaque especial para a Ala das Baianas, a Evolução sentiu a imensa quantidade de água que veio, curiosamente, da temática da escola, que apresentou o enredo “Um Pedaço Do Céu”, exibido em 64 minutos – apenas um antes do prazo regulamentar. * VEJA AQUI FOTOS DO DESFILE
Enredo
Quando foi revelado, o enredo da Águia de Ouro causou um misto de curiosidade, dúvida e surpresa. Do que “Um Pedaço Do Céu” trataria, afinal? No fim das contas, para resumir toda a questão, o tema da escola da Zona Oeste paulistana é a busca (e a posterior conquista) de sonhos, utilizando o céu como metáfora para a realização dos mesmos.
No enredo, logo no primeiro setor, é apresentado uma visão mais lúdica e infantil da criação de sonhos, algo idílico e quase ilusório. O segundo setor traz a luta para realizar os próprios sonhos, toda a absorção de experiência e batalhas vencidas para atingir o objetivo. Já o terceiro mostra as sensações que são vivenciadas por quem busca e por quem realiza os sonhos – muitas vezes iniciados ainda na infância. Por fim, o desfile é encerrado com a tentativa de traduzir o que são os sonhos para diversas culturas, religiões e tradições distintas.
Um enredo mais subjetivo e abstrato, que não reproduz uma linha cronológica, é um desafio extra para qualquer carnavalesco por conta da filtragem de milhões de informações e referências que cabem em tal temática, além da organização das mesmas e da comunicação de tudo isso para os componentes e público. Em tal quesito, bastante desafiador, o carnavalesco Sidnei França teve atuação inspiradíssima.
Mestre-Sala e Porta-Bandeira
Com fantasias quase que inteiramente douradas e representando “O Infinito é a Ilusão do Faz-de-Conta” e desfilando logo após a ala das baianas (a segunda da exibição), João Carlos Camargo e Lyssandra Grooters bailaram para encenar sentimentos tão próprios de crianças, remetendo a seres imaginários e um mundo sem problemas e situações negativas.
Na avenida, a prática não foi tão simples quanto a teoria aponta. A persistente chuva que não deu trégua um segundo sequer no desfile da Águia transformou a exibição do casal em um desafio bastante destacado. E, em boa parte da avenida, eles tiraram de letra a responsabilidade. Se, no primeiro uma rajada de vento tentou (em vão) tirá-los do prumo, no segundo e no terceiro a dupla teve atuação pouco mais tranquila – “apenas” com chuva e pista molhada.
A coroação da exibição veio, justamente, no terceiro quesito. Extremamente à vontade, João Carlos começou a sambar, como é bastante característico do mestre-sala, no limite do bailado. E, sem se importar com as condições climáticas adversas, ele mostrou um samba no pé apuradíssimo. Vale destacar, também, a extrema sincronia dos dois componentes, capazes de efetuar giros muito próximos um do outro, deixando a dança ainda mais difícil – e extremamente bem executada.
Samba-enredo
Contando, setor a setor, o desfile, a canção, tal qual o enredo quando foi anunciado, causou surpresa. A melodia, bastante agradável, convidava o ouvinte a refletir, imaginar e sonhar sobre os próprios sonhos de maneira musicada. E, nela, está tudo lá: a “inocência de criança”, “basta acreditar que um novo dia vai raiar” e o “sabor da vitória” – todos os trechos entre aspas, por sinal, foram cantados pelo carro de som e pelos componentes.
Para que a canção tivesse boa noite na passarela, seria indispensável uma boa condução sob chuva do carro de som da Águia de Ouro. E ela veio: com Serginho do Porto, Douglinhas Aguiar e a reestreia na escola de Chitão Martins, a música embalou muito bem o desfile da agremiação da Pompeia. Também vale destacar as bossas, sempre equilibradas, da Batucada da Pompeia, novamente comandada por um dos grandes baluartes ainda na ativa do carnaval paulistano: Mestre Juca.
Alegoria
O carro abre-alas teve como destaque uma menina que, como toda e qualquer criança, imagina um mundo utópico, apenas com sentimentos bons e situações favoráveis. E, nesse mundo de faz-de-conta, um mago a ajuda a viver em um reino fascinante, com carrosséis, bailarinas, carruagens e a própria Águia de Ouro. O segundo carro alegórico trouxe o chamado “Céu das Conquistas”, representado artisticamente como o Templo de Hércules. Com o próprio herói grego e as famosas colunas, é fácil identificar a influência grega na peça.
A terceira alegoria traz outro tipo de céu: o de sensações, com sensações, prazeres e celebrações. E, para representar tais sentimentos, foram escolhidas guloseimas, como bolos, balas, doces diversos e sorvetes. Há, também, um personagem que guia as ações no carro, chamada de Miss Cake. Por fim, o quarto carro representa o céu da eternidade, representado como um templo da saudade, com diversos baluartes do samba paulistano que não estão mais nesse plano – todos eles imortalizados, novamente, pela Águia de Ouro.
Não faltaram bons acabamentos para cada uma das alegorias, que não sentiram o peso da chuva em momento algum e não perderam nenhum tipo de adereço. Chamou atenção, também, a diferença na concepção de cada um deles, como exigia o enredo – e algo que não é tão facilmente alcançável. Vale destacar, também, o doce aroma que saia das alegorias, proporcionando uma sensação imensa de bem estar-para os presentes no Anhembi.
Fantasia
O começo do desfile da Águia de Ouro teve um conjunto de fantasias fantástico, com acabamentos impecáveis e fantasias bastante luxuosas. Aqui, é importante fazer um especialíssimo destaque: a Ala 02, das Baianas, intitulada “Bonecas de Pano… A Colorida Inocência da Menina”, era uma das mais bonitas de todo o carnaval paulistano em 2023, com bonecas de pano e material que remetia ao algodão em tons pastéis.
Após o primeiro setor, entretanto, as fantasias tornaram-se irregulares quanto ao material utilizado. Enquanto algumas seguiam com materiais mais luxuosos, outras tinham opções mais em conta. Tudo, entretanto, de acordo com os protótipos apresentados pela agremiação.
É importante destacar, também, que as fantasias tinham significado simples desde que o espectador compreendesse em qual setor ela foi inserida. A fantasia que, por exemplo, tinha tons escuros e componentes com figurinos que emulavam cintas-ligas e um chicote estava dentro do contexto dos prazeres mais adultos – como o amor ou um grito de gol. Sem tal identificação prévia, ela poderia parecer avulsa no desfile – o que, é bem verdade, não aconteceu.
Harmonia
Um bom samba conta muito para que os componentes tenham mais vitalidade para cantar. E, ao longo de todo o desfile da Águia de Ouro, a chuva tentou, a todo custo, atrapalhar o quesito. Não conseguiu: o canto foi de boa qualidade e perene durante toda a apresentação – um imenso mérito da comissão de Harmonia da escola.
É bem verdade que os staff não chamavam muito a atenção dos componentes (leia mais no quesito “Evolução”) quanto ao canto e alinhamento das alas, o que denotava tranquilidade e a sensação de que tudo corria às mil maravilhas. E, de fato, não existe motivo para reclamar de tal segmento da escola.
Evolução
Primeiros a chegar para o desfile de uma escola de samba, os staff precisam ajeitar absolutamente todos os detalhes para que o show seja perfeito. A Águia de Ouro, que entrou no Anhembi por volta das 05h, certamente teve componentes que chegaram a, no mínimo, oito horas antes do início da apresentação. E, nessas oito horas, cerca de sete foram debaixo de chuva. O cansaço, é claro, bate. E isso ficou refletido na apresentação.
Os staff pouco faziam alertas aos componentes – que, é bem verdade, não precisava de muitos ajustes. Mas, conforme o desfile ia avançando, os desfilantes passaram a se movimentar menos, fazendo dinâmicas muito simples com os braços e pés, prejudicando o quesito.
Há, entretanto, um mérito indiscutível da escola em tal quesito: o recuo da bateria. Mestre Juca, dos mais experientes diretores de bateria de São Paulo, fez um movimento bastante simples e rápido, entrando no local tão logo fosse possível, por uma fresta mínima. A ala seguinte também não demorou muito tempo para preencher o espaço. Todo o movimento demorou cerca de 65 segundos – tempo irrisório perto de outras coirmãs.
Apesar do tempo mais exíguo para encerrar a apresentação, não houve grande aperto de passo para chegar dentro da cronometragem. É importante destacar que a escola, entretanto, começou a exibição com movimentos mais morosos – e foi, paulatinamente, crescendo.
Comissão de Frente
Com comissão de frente bastante elaborada, foram três atos encenados pelos bailarinos. No primeiro deles, são, ao todo, sete fantasias distintas, representando personagens com personalidades distintas: uma Menina e seis amigos dela. No segundo, surgem mais dois, com figuras nefastas e com fantasias escuras, que tentam desestabilizar, de alguma forma, a Menina – personagem central da encenação, que busca jogar amarelinha no mundo do faz-de-conta. Por fim, no terceiro, seres celestiais chegam para fazer com que a Menina e os amigos vençam a partida de amarelinha.
Com uma coreografia bastante longa (a realização inteira dela durou a Arquibancada Monumental inteira, por exemplo), os bailarinos conseguiram divertir e emocionar em um simples jogo de Amarelinha teatralizado – algo raríssimo. Com componentes bastante expressivos, era possível notar pessoas torcendo para que os integrantes em tons mais claros conseguissem levar a Menina à vitória – que, quando acontece, torna-se um momento de muita celebração.
Outros destaques
Ainda antes do desfile começar, chamou atenção o discurso do presidente da Águia de Ouro, Sidnei Carrioulo. Absolutamente todos que estavam próximos a ele mantinham olhares fixos no mandatário da agremiação. Pouco distante de tal momento, começaram a surgir um adorno bastante agradável: nas cuícas da Batucada da Pompeia, uma águia que movimentava as asas e ficava com os olhos vermelhos chamava atenção de quem passava pelo local.
A chuva teve papel decisivo no desfile da instituição. Quando a escola fez o Esquenta, o tempo estava seco. Ao começar o desfile, a garoa retornou. Por fim, com cerca de 28m, a chuva começou a cair mais intensamente.