Enredo: ANTI-HERÓI BRASIL
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SINOPSE
Brasil, alguma hora entre a primeira faísca e a última gota.
Noite de lua cheia. Temperatura indeterminada.
Cruzamento entre as ruas da glória e da amargura. Sem número. (1ª instância)
O desafio foi lançado: o veneno ou a cura? A palavra ou o não disse? A luz ou a sombra? O cachimbo ou a flauta? Ser herói ou vilão? O Senhor do Corpo irrompe a lógica dualista e abre caminhos: é preciso de uma terceira cabaça! Eis a energia exusíaca que, ao misturado e sacudido, faz com que os opostos possam coexistir no mesmo ser. Ao fazer da encruzilhada seu domínio, ensina que não há uma direção única: inventa-se a vida pelos desvios, pelos dribles, pelas curvas.
Laroyê ! Da cabaça de Igbá Ketá , propaga-se a voz ancestral de um estado de vida que desafia a presença do Estado. Sim, há um Estado que toma para si o poder da força e há uma voz que não se comporta nos padrões estabelecidos. Uma voz que não se deixa ser controlada ou regulada. Uma voz anti-heroica! Na esquina em que a desigualdade corta a humanidade, o anti-herói é concebido para assentar suas práticas que desorganizam e ordenam a realidade.
Manifesto Valente! Ao andar pelas ruas, vigiadas e vigilantes, a voz anti-heroica puxa coro em levante. Ecoa em cantos para ocupar o espaço público mesmo sob perseguição, com todos os olhos voltados para si, dizendo-lhe ser criminosa. Para fazer da rua terreiro, essa voz transgrediu leis, esquivou-se de normas, revidou a violência. No cruzo onde a noite atravessa o prazer, a voz se fez malandragem brasileira, enredada pela pele negra, pela pobre posição e pela situação periférica.
Brava atitude! Essa voz aflorada é a sabedoria oralizada pela poética das margens, dos que foram desamparados pela centro-cidade e afastados para nunca reverberarem. Ledo engano! As mãos do controle não podem impedir uma comunicação poderosa da boca a boca. Sob a melodia de Enugbarijó , da Boca Coletiva, a condição marginal tornou-se altiva. Todo um arsenal de lábias e gírias foi criado e transmitido como legado dos que lutaram para fazer a conversa de bar ser aula, a vida se tornar escola.
Glórias aos mestres! Os marginalizados fizeram do corpo um texto vivo, compilado de páginas da história que ginga com dinamismo. Um salve à voz repercutida nos encantamentos de Zés e Marias, que diante da opressão e do silenciamento, mantiveram seus ideais desobedientes no fio da navalha. O poder de se adaptar é a especialidade da voz que se tornou o coração da identidade nacional. E não “ tum-tum ”, essa voz segue a palpitar!
Ponto de cruzamento entre as páginas dos corpos e as páginas das estantes. Horário comercial. (2ª instância)
Em sutis, ouve-se as necessidades do brasileiro e seus atos errantes, tortuosos, desviantes. Quando veio a civilidade, as pessoas foram jogadas para debaixo do tapete. Afinal, quem é notário? Escondidas do mundo, em silêncio, passariam a não existir. Mas essa voz abafada emite ruídos pela literatura ao fazer do cotidiano poesia.
Abriu-se um “ trac , trilha ! trec , trec ”! É o som enferrujado da máquina que legisla baseada em preconceitos. Desafiá-la requer burlar seus princípios e desativar suas leis de funcionamento. O ar que sai dos pulmões recusa ser programado para só dizer “sim, sim”, porque seu recurso mais potente é a palavra. Com diferentes nomes e histórias, a voz brasileira foi sendo balbuciada com linguagem anti-heroica.
“Vruuuum”, o avanço industrial toma conta das ruas! O som da garganta resiste nem sempre será, nem sempre serão. Ora, ora pro nobis de uma voz com as marcas da falta de um abrigo, que sem o afeto familiar vai capitanear entre a poeira e a areia. Ela pega carona com o vento de um canto para o outro, em busca de alguma esperança de que chegue a hora de seus sonhos, numa migração de mãos dadas com a morte e a vida. Nos atalhos encontrados, se envereda com seu bando à espera da sorte e busca nunca estar na solidão que mata de dor.
E quando preciso, volta como ataque para se defender. E quando é o caso, compadece com malícia para se saciar, porque a cobra coral já morde a cauda, sendo a fome e a comida. E quando perdida, acredita no milagre porque se tem fé na proteção de todos os deuses e de todos os guias. E quando quer vadear, faz murmurinho em mesa de bar, vira o copo sem pensar na saideira e cai no gosto da boemia.
É uma voz que faz o corpo libertar-se na sensual que não dá ouvidos às queixas dos olhares. É um gemido de prazer aos amantes do sexo. É a ousadia de um beijo que dá língua ao carinho que não se deixa censurar.
É o desejo de que a cultura popular salve a pátria. Voz utópica que nos liga.
“Trimmmm-trimmmm”, caiu a ligação! A voz anti-heroica desbrava todas as regiões, se lança na lama e vira constelação porque a missão exige estar em constante metamorfose para ser a cara do país. A cidade moderna é uma máquina de capital motorizada que consome a energia da massa às cinco horas na Avenida Central e depois empilha os restos por aí como se a vida fosse desejada. Essa é a espécie de retroalimentação de pessoas que se sacrificam na jornada do dia a dia e que são vistas como animais a serem abatidos. A metrópole é uma indústria que fabrica marginalidade como efeito colateral. Nesse campo de batalhas sem rimas, a voz marginal é heroica no improviso para lançar o verso que denuncia o podridão desse mercado.
No cruzamento das ruas do passado com as ruas do futuro, o relógio marca a hora: agora. (3ª instância)
Uma urgência é sentida no ar. Brasil, mostre a sua voz! O desabafo de uma legião de anônimos quebra o silêncio do status quo. Ouve-se um clamor que retome as ruas pela boca coletiva de trabalhadores que estão em deslocamento o tempo todo. Entre a Augusta e a Angélica, multiplica-se um grito que dá a mão na Consolação. No fluxo ordinário, essa voz se expressa pelos semáforos, em parques e praças. Percorre quadras, campos e ginásios. Trafego por calçadas, vias e viadutos. Circula por obras, passagens e edifícios. Trânsito de lá pra cá, do Leste para Oeste, do Sul para Norte, arriscando o asfalto e cantando pneus para sustentar um filho e uma nação. Seguem com ambição porque, apesar de tudo, o tempo não para e o corre é mil grau. Mas nos respiramos dessa escalada, as ruas são ocupadas por gargalhadas que mostram que a vida não é só trabalho. Em meio às contradições, o riso tromba com a alegria na maior atividade e se faz comunidade.
Aparecendo na fotografia somente do outro lado da vida, os heróis dessa história não são os mais corajosos, os grandes campeões, os super-heróis midiáticos que só existem na tela. Pelo contrário, são aqueles que erram, que caem, que perdem, mas que continuam bradando o seu direito à humanidade. Cujo aqueles que falam é um perigo para a hipocrisia social e por isso são julgados e condenados. Consagrada seja a voz dos que incomodam, inquietam, subvertem, radicalizam, retrabalham e revolucionam a ordem operante e a “pasta” do progresso.
Encruzilhada entre as ruas da criação e da realidade. Hora exata em que da periferia ecoa uma reforma: “Seja marginal, seja herói”! Na entregue, tudo que era resto passou a ser início, a obra do futuro é feita da matéria do passado. Na terceira cabaça, nossa gente vira nossas estrelas. Na Avenida, quem leva o país nas costas recebe os devidos louros pelo canto da Cantareira. Na voz eternizada, reverbera o nosso ato heróico.
Que toda hegemonia seja questionada.
Que toda imposição seja superada.
Que toda convenção seja transgredida.
Anti-heróis brasileiros, uni-vos!