Divina inspiração! Vem dos deuses, sem dúvida, a explicação para tão sublime acontecimento. No carnaval de 2015, a escola de samba Mocidade Alegre homenageou uma resplandecente estrela brasileira: Marília Pêra! E momento mais oportuno não teria, pois, no final do mesmo ano, a atriz deixou de brilhar na Terra para brilhar no céu. O enredo “Nos palcos da vida, uma vida no palco…. Marília” foi uma das últimas apresentações da mesma e, sem dúvida, uma das mais emocionantes. Coube à escola de samba, importante instituição da nossa cultura, a missão de consagrar uma estrela genuinamente brasileira.
Com um samba de enredo de extrema poesia, afetividade e emoção, que não poupou adjetivos à homenageada, a Mocidade Alegre foi a terceira escola a desfilar no sábado de carnaval. A responsabilidade de defender um tricampeonato e sonhar com o tetra não intimidou a imponente agremiação, que entrou na avenida com a garra de quem domina o palco. A irretocável interpretação musical de Igor Sorriso em conjunto com o “Ritmo Puro” da bateria de Mestre Sombra levantou o público e empolgou a alegre comunidade, transformando o desfile em uma apresentação de máxima qualidade. As bossas que a bateria executou em diversos momentos, eternizaram o verso “Bravo, Marília!” e todos, de fato, a aplaudiram.
O autor do enredo, Sidnei França, recorreu à mitologia grega para narrar o surgimento da estrela Marília Pêra. Os deuses Dionísio e Apolo, protagonistas desse momento místico, representam polos opostos que necessitam um do outro para existir. O espírito dionisíaco ‒ presente na música e potencializador dos desejos, do delírio e da festa ‒ sempre está em relação com o espírito apolíneo ‒ presente nas artes plásticas e senhor do belo e da harmonia. As manifestações artísticas possuem os dois em suas essências. O que varia é a intensidade com que cada um se apresenta ao exterior. Na narrativa contada pela Mocidade, o destino de Marília foi conduzido por ambos os espíritos.
O primeiro ato do desfile iniciava-se com a comissão de frente “Surge uma estrela”, representando o momento em que a brilhante joia Marília, aos 4 anos, fez sua primeira encenação. Em seguida, o primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira, Emerson e Karina, bailava graciosamente com luxuosas fantasias douradas monocromáticas. A velha-guarda, na posição de guardiões do casal, complementou a poesia da arte que é passada por gerações. O grupo performático “Asas douradas sob as luzes da ribalta” fez o cortejo que antecedia o gozo artístico que encerrava o ato. Considerada por muitos a mais bela da década, na primeira alegoria do desfile, intitulada “Divina Inspiração” (assim como o primeiro verso do samba), os carnavalescos Sidnei França e Márcio Gonçalves traduziram a potência de Marília carregar em si o equilíbrio dos espíritos contrastantes da arte.
A atriz possuía a elegância da “flor bailarina” mesmo quando encenava a comédia da embriaguez, como a personagem Darlene do seriado Pé na Cova, retratada na quarta alegoria do desfile.
O segundo, o terceiro e o quarto ato mostraram ao público alguns dos principais trabalhos da homenageada. Seja nos palcos das peças clássicas do teatro, seja nos irreverentes musicais do teatro de revista. Das telas dos cinemas aos televisores de todo o Brasil. O desfile da Mocidade Alegre mostrou que Marília dominava todos os campos da atuação e que deixou seu legado em importantes trabalhos. Com figurinos muito bem elaborados, com fino acabamento e de eficiente comunicação com o público, os carnavalescos equilibraram o requinte de Apolo e o popular de Dionísio. Toda ala despertava o desejo de conhecer mais sobre cada obra que Marília encenou.
O ato final, a grande consagração pelo Carnaval de uma estrela brasileira, abusou de uma paleta de cores quentes que evocava o esplendor da realeza de quem já era imortal. Adornos gregos se misturaram a ornamentos geométricos e arlequins carnavalescos. A arte grega clássica e a arte brasileira, carnavalesca e contemporânea, por meio de suas figuras mitológicas sagradas, reverenciaram a dama das nossas artes cênicas em pleno palco do samba.
O carnaval da Mocidade Alegre foi uma narrativa que eternizou a imagem de Marília Pêra como, de fato, a estrela que era. Aqueles que não tiveram muitas oportunidades de ver a atriz nos palcos ou nas telas, ao assistir o desfile da Morada (ao vivo ou por vídeo) constroem no imaginário a figura de uma artista sem igual, iluminada pelos deuses. A imponência, o luxo e o apelo popular do desfile tornaram-se indissociáveis da imagem de Marília, que agora é uma lenda brasileira!
Mocidade Alegre e Marília são imortais. Bravo!
Autor: Cleiton Almeida – Mestrando em Estudos Contemporâneos das Artes/UFF, Graduando em Artes Cênicas – Cenografia/EBA/UFRJ, Coordenador geral e Pesquisador-orientador do OBCAR/UFRJ.
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