Enredo: ‘É ONDA QUE VAI… É ONDA QUE VEM… SEREI A BAÍA DE TODOS OS SANTOS A SE MIRAR NO SAMBA DA MINHA TERRA’
Capítulo 1
Do Mar
Sou Kirimurê, o grande mar interior do povo Tupinambá. Nasci de uma ave encantada decaída do céu. Contavam os indígenas antigos que seu coração abriu a terra quando tocou o chão, foi preenchido com o mar do Atlântico e suas alvas asas bordaram de areia meu contorno. Sou a mãe cujos filhos são peixes, de águas mornas e mansas onde as baleias cantam.
Capítulo 2
Da Terra
Sou a boca de mar do primeiro de novembro de Gaspar de Lemos, a Capitania de Francisco Pereira Coutinho e dos franceses que vinham até mim, atrás do meu pau-brasil e humaitás.
Vi a comitiva de Tomé de Souza, que D. João III mandou para fundar a primeira capital, desembarcar na praia do porto da Barra. Construíram fortes, trouxeram a cruz, escravizados e cana-de-açúcar. Fui cobiçada pela Companhia das Índias Ocidentais, invadida pelos holandeses.
Mas a terra que banho é barril dobrado; é de luta.
O som de minhas ondas ecoa nos gritos das revoltas, levantes, e pela independência no dois de julho, pois a luta pela liberdade também tem um perfume de maresia.
Capítulo 3
Dos Santos
Sou de todos os santos e axés. Marés barrocas me fizeram África do lado de cá. Na minha beira floresceram igrejas e candomblés. A magia que sopro pelos ares ao meu redor balança as medidas do Bonfim, levanta a saia das baianas, desfralda os estandartes das procissões, faz dançar as folhas das gameleiras de Nosso Senhor da Vera Cruz que fazem levantar os que já se foram, assanha a brasa da fogueira junina de Xangô que ilumina Santo Antônio na novena, mistura o toque dos sinos com os agogôs, espalha a vibração dos atabaques e do Iorubá falado na missa. Pelas minhas águas que a Gratidão do Povo desfila levando Bom Jesus dos Navegantes em triunfo e devoção.
Meu axé deseja que Deus lhe abençoe.
Capítulo 4
Do Povo
Sou a fartura que faz as redes do povo do mar pesarem em alegria. De mim vem o sustento de pescadores, marisqueiras, catadores de pinaúna, de siri-boia, papa-fumo, chumbinho, salambi, peguari, rala coco. Meu balanço ensinou o Marinheiro Só a nadar nos versos cantados na capoeira dos estivadores e no ritmo das Marujadas e Cheganças.
Meu vento infla as velas dos saveiros que me cruzam a superfície em um vai e vem bailarino, me fazem de rua e palco. Levam o pescado, dendê, farinha, cestos de cana-brava, caxixis de barro, rendas de bilro, frutas, folhas, para a feira de São Joaquim e o Mercado Modelo. De lá, aliás, ainda vejo Maria de São Pedro e Camafeu de Oxóssi refletirem em meu espelho d’água a me admirar. Exalo meu encantamento quando se abre uma garrafa de cachaça de folhas e no cheiro das comidas nos tabuleiros, tachos, alguidares, panelas e nas cabeças das Paparutas a rodar e dançar.
Capítulo 5
Do Reino
Sou o reino de Aioká que guarda tesouros e segredos nas profundezas aquáticas. Naufragados descansam em sua eternidade, casas dos habitantes marinhos que enriquecem a arquitetura viva das profundezas. Tenho ouro negro em meu recôncavo, que traz em sua essência a lembrança de um reino extinto há milhares de anos.
Estou na beleza enigmática que envolve a Ilha do Medo e na misteriosa água da Fonte da Bica que, juram, a água fina faz velha virar menina.
Sou a soberana da Amazônia Azul, a mais bela de toda a costa brasileira.
Minha natureza reina absoluta na exuberância da ilha que os frades nomeiam, onde meu azul envolve o verde da mata atlântica num espetáculo de preservação e respeito.
Sou o encontro de duas rainhas. O mar salgado de Iemanjá recebe as águas doces de Oxum quando os rios Paraguaçu, Subaé e Jaguaripe desaguam em mim.
Capítulo 6
Da Festa
Sou navegante da alegria, da festa. Por isso chame, chame, chame gente que eu benzo o banho de cheiro dos foliões, os blocos de caboclinhos, blocos afros e os Afoxés. Chame gente que é massa sentir os sorrisos felizes por trás das máscaras do carnaval dos mascarados, dos caretas e se alegrar com o arrasta povo do Forró do Jegue. Ó paí, que o embalo da Festa D’Ajuda já anunciou que a capela deu sinal, quem quiser sambar apareça!
Chame gente para tomar um sorvete na Ribeira, se esbaldar no samba de roda da segunda-feira gorda e sambar com a Barquinha de Bom Jesus dos Pobres.
Comemoro e reverencio a vida em cada pôr do sol no farol, com a esperança de que algum dia a paz vencerá a guerra e viver será só festejar.
Texto: Jack Vasconcelos
Ilustração: Antônio Vieira