InícioGrupo EspecialMauro Cordeiro: 'Sabiá, o griô do meu torrão'

Mauro Cordeiro: ‘Sabiá, o griô do meu torrão’

'Ao longo dos seus 95 anos de vida, seu Djalma se notabilizou pela sensibilidade, pela articulação e pelo poder de liderança'

O que é memória? Compreendo a memória como uma construção coletiva, um trabalho de registro realizado por um determinado grupo social, um quadro geral dos eventos significativos para sua existência. Esta memória coletiva forma uma espécie de acervo de lembranças compartilhadas que ajudam, inclusive, a promover a coesão do grupo. O passado é permanentemente reconstruído e ressignificado pela memória coletiva. Neste sentido, a memória é uma produção.

Foto: Divulgação

Nas múltiplas e diversas filosofias africanas, sobretudo naquelas oriundas da África Ocidental, a oralidade desempenha papel fundamental na manutenção dos valores, saberes e práticas dos grupos sociais. É neste sentido que o papel dos griôs era central. A expressão griô tem origem francesa, já cunhada no período colonial para designar os diversos tipos de personagens que desempenhavam atividades semelhantes. Em solo africano eles eram nomeados de formas distintas de acordo com cada povo e etnia, mas algumas das suas nomenclaturas eram diali, gueséré, wambabé, aouloubé e guewél.

O griô é um narrador, alguém responsável pela manutenção da história de um grupo e a transmissão dessa história e dos seus saberes através de contos, cantos e crônicas; sempre de maneira oral atuando na manutenção da história local. Através dos griôs a memória coletiva dos grupos sociais é preservada em um processo produtivo operado, via de regra, pelos mais velhos.

Na história do Acadêmicos do Salgueiro um personagem se destaca pela produção da memória através da oralidade: Djalma de Oliveira Costa. Ao longo dos seus 95 anos de vida, seu Djalma se notabilizou pela sensibilidade, pela articulação e pelo poder de liderança. Foi um dos fundadores da agremiação, teve a alcunha de “prefeitinho do Salgueiro”, testemunhou e protagonizou acontecimentos que, pela sua ação, transformaram-se em marcos temporais e memoriais do que é a escola.

É impossível contar a história da agremiação sem reconhecer o papel de destaque de Djalma. Na escola ele foi o primeiro intérprete, compositor vitorioso, diretor de carnaval, candidato a vice-presidente em eleições gerais e, por fim, aclamado presidente de honra. Liderança expressiva do morro. Articulador social. Um sabiá, nosso griô. Ao longo dos anos recebeu milhares de pesquisadores, apaixonados e curiosos no acervo que construiu, mas as verdadeiras preciosidades eram as deliciosas histórias que relatava.

Djalma Sabiá não era um guardião da memória salgueirense, ele era o seu produtor. Foi através da construção dos sentidos de um passado que viveu que Sabiá nos ensinou o que o Salgueiro é. Este processo produtivo da memória em vermelho e branco se estende para muito além dos nove títulos, das revoluções e dos carnavalescos tão celebrados; o Salgueiro de Sabiá é aquele dos anônimos artistas populares que ainda vivem pois foram registrados em suas histórias tão gentilmente compartilhadas por décadas. É o Salgueiro da unidade de um morro que já encantava a cidade pela sua musicalidade, pelas suas festas, pela religiosidade que atraía visitantes e através dos carnavais se eternizou. É, fundamentalmente, o Salgueiro que existe para ser vivido e partilhado no dia a dia e somente assim pode ser compreendido.

Em novembro de 2020, o Sabiá descansou. Como um grande ancestral, o griô é eterno. Um ancestral é um antepassado, familiar ou não, que deixa uma herança espiritual na Terra contribuindo para evolução da comunidade ao longo de sua existência. Essa herança, deixada pelos ancestrais de um grupo social, atua tanto como forma de manutenção da força vital quanto para estabilização e coesão daquele grupo. Enquanto houver Salgueiro, produto direto da contribuição de seu Djalma, nosso baluarte viverá representando “a
saudade dos nossos bambas lá do céu”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRUNO, Leonardo. Explode, coração: histórias do Salgueiro. Coleção
Cadernos do Samba. Rio de Janeiro: Verso Brasil, 2013
COSTA, Haroldo. Salgueiro, academia de samba. Editora Record, 1984.
HALBWACHS, Maurice. Memória Coletiva. Editora Vértice, 1990.
LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. Selo Negro
Edições, 2014.
LOPES, Nei; SIMAS, Luiz Antonio. Dicionário da história social do samba.
Editora José Olympio, 2015.
LOPES, Nei; SIMAS, Luiz Antonio. Filosofias Africanas. Editora Civilização
Brasileira, 2020.
NATAL, Vinícius Ferreira. Cultura e Memória na Escola de Samba Acadêmicos
do Salgueiro. Mestrado em Antropologia). Universidade Federal do Rio de
Janeiro, 2014.

Mauro Cordeiro: Doutorando em Antropologia (UFRJ), Mestre em Ciências Sociais (PUC-Rio) e Licenciado em Ciências Sociais (UFRRJ). IG: @maurocordeiro90 TT: @maurocordeirojr

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