A série do site CARNAVALESCO de matérias dos “Desfiles da Década”, segue relembrando apresentações marcantes que passaram pela Marquês de Sapucaí, entre os anos de 2011 e 2020. Teremos neste episódio, um desfile que impressionou o Sambódromo e consagrou o carnavalesco Leandro Vieira em sua estreia no Grupo Especial. O carnaval da Mangueira de 2016 saltou aos olhos do público com uma estética diferente da habitual usada por carnavalescos antecessores a ele na escola – menos verde e rosa – com muita beleza, criatividade e ousadia. Além da estética, as alegorias impressionavam pelo acabamento primoroso e fantasias de saltar os olhos. * OUÇA AQUI A RÁDIO CARNAVALESCO
Desfilando com o enredo “Maria Bethânia, a menina dos olhos de Oyá”, a Estação Primeira abriu o desfile saudando a senhora dos ventos, a comissão composta por quatorze mulheres negras com seios desnudos, dançando forte com uma coreografia marcada por passos afros. Além das guerreiras, tínhamos Iansã dançando com seus apetrechos prendendo a atenção do público que vibrou a cada giro no alto do tripé, que representava o bambuzal.
“Quando fui conversar com o Leandro sobre o carnaval da Mangueira de 2016 lembro das nossas ideias coincidirem imediatamente. Os dois tinham em mente trazer mulheres negras para a avenida. Ele foi audacioso em querer elas com os seios de fora e bancou a proposta para a direção da escola, que relutou um pouco mas achou pertinente para o que tínhamos pensado. Trabalhar com mulheres, negras e representando Oyá foi e sempre será uma honra”, apontou Scapin.
O axé da Mangueira seguiu firme e logo após a passagem da comissão tivemos um dos pontos mais altos do desfile, a imagem do carnaval: Squel representando uma iaô desfilando careca. Dançando junto com Raphael Rodrigues, apenas com uma pena na cabeça fazendo referência a realeza, fizeram uma apresentação impecável, cheia de emoção atrelada ao bailado do casal com muito entrosamento e força, além de usarem uma fantasia deslumbrante. Certamente, todo sambista apaixonado se lembrará desse momento daqui a 50 anos. Desde a entrada do setor um até o fim do desfile a passagem do casal causou um frisson sendo um dos pontos cruciais para levantar o público durante o desfile. Manter a concentração e preparar a surpresa do desfile – para ficar careca a porta-bandeira precisou de cinco horas de preparação – consumiu Squel, que explicou que não percebeu a dimensão da comoção que causou.
“A responsabilidade que cerca uma porta-bandeira é tão grande, que os preparativos para me tornar uma iaô me consumiram. Com tanta coisa acontecendo e eu tendo que estar atenta à tudo para manter o sigilo, me enxergar e observar a reação do público foi algo que não consegui absorver na hora. Só fui ter dimensão do que aconteceu ao fim do desfile. A emoção e a energia eram intensas demais e, com isso, acabei esquecendo que estava careca em alguns momentos. A energia que nos cercou me conduziu durante todo o processo entre a concentração e o desfile. É algo que até hoje ainda não consigo achar palavras para descrever o que foi viver esse desfile mágico”, comentou a porta-bandeira mangueirense.
Foram 29 alas, 6 carros e mais de 4 mil componentes. No carro abre-alas tínhamos novamente Iansã mas dessa vez acompanhada por Oxum, outro orixá que faz parte da vida de Bethânia. Na frente do carro, búfalos em bronze. Era a Mangueira abrindo o seu carnaval com tons em palha e ouro, sem o habitual verde e rosa, mais um impacto para o carnaval que via nascer o ‘estilo’ Leandro Vieira. Nas alas seguintes o carnavalesco saudou os orixás até chegar ao catolicismo encarnado pela cantora.
Na segunda alegoria da escola a devoção católica é coroada, representada pelo coração sagrado de Jesus, detalhes do carro com ladrilhos das antigas igrejas e anjos barrocos. Beth Carvalho em destaque no carro marcando seu retorno em um dos seus últimos desfiles pela verde e rosa.
O conjunto de fantasias do, até então jovem, carnavalesco encheu os olhos de quem assistia. Figurinos com uma beleza impressionante utilizando materiais alternativos como o vime e acetato. Aparentemente leves que facilitaram a evolução dos componentes que atravessaram o Sambódromo extasiados de alegria cantando forte o samba da agremiação. Destaque para a ala das baianas com uma fantasia luxuosa em ouro velho, representando as igrejas antigas de Salvador, a imagem de Santa Bárbara e rosas vermelhas lembrando a orixá dona da cabeça de Bethânia. Além das baianas, a ala das crianças que representava Cosme e Damião foi outra que podemos citar como exemplo de beleza.
Na terceira alegoria temos o início da vida artística de Bethânia representada. O palco do Opinião, onde a cantora se apresentou ganhando notoriedade nacional com a canção ‘carcará’ apresentada pelo animal que dá nome a música de forma estilizada.
Os mestres Rodrigo Explosão e Vitor Art tiveram papel fundamental na disputa pelo título, garantindo a nota máxima do quesito e dando um show de rendimento com a bateria. Fantasiados de ‘Fera Ferida’ a bateria ousou com bossas e paradinhas, que chamavam o componente e o público para cantar forte o samba, outro quesito que teve papel de grande importância para escola sendo um dos melhores daquele ano. Evelyn Bastos, a rainha do samba, desfilando pelo terceiro ano à frente da ‘Tem que Respeitar meu Tamborim’ deixou o público sem ar com sua apresentação com entrosamento e muito samba no pé.
“Em 2016 tive a oportunidade de pegar a fantasia dias antes, experimentei quatro ou cinco vezes. Levei no meu centro, deixei aos pés da minha mãe Oxum e Iansã. O processo desse carnaval pra mim foi muito mais completo, a fantasia estava cheia de axé e foi uma das que me deixou mais à vontade, estava leve, muito feliz. Ela é predileta de muita gente e dou toda razão pra isso. Digo que de beleza e produção é a mais completa, eu amo”, explicou a rainha.
No carro em que celebrava os cinquenta anos da carreira musical de Maria Bethânia, com o título de ‘Abelha Rainha da MPB’ , personalidades da música e da televisão que fazem parte da vida e carreira da cantora vieram levantando o público. Em dourado, a alegoria carrega o luxo na simplicidade, na frente uma abelha que por si só entregava a narrativa do desfile.
O quinto setor apresenta outra faceta da menina de Oyá que passou a colocar em cima do palco obras literárias, atuando através de poesias. O único problema do desfile vem adiante, o carro que apresentava o palco de Bethânia em cena teve problemas com iluminação apagando algumas vezes durante o desfile. Por sorte a situação passou despercebida pelos julgadores e a escola não despontuou no quesito.
O último setor apresentou os aspectos culturais da cidade natal da cantora, Santo Amaro da Purificação – no Recôncavo Baiano. O desfile encerra com a passagem de um grande circo, colorido em verde e rosa, fazendo referência ao circo que Bethânia se encantou durante a infância. Os detalhes do carro, com elefantes azuis, cavalos e animais em volta do ‘céu de lona verde e rosa’ dão um efeito lúdico ao fim do desfile da campeã de 2016. No centro, a homenageada passa na avenida aclamada e emocionada. Encerra a sua mais que justa homenagem brindando e saudando todos com o axé que só ela tem.
Na quarta-feira de cinzas, a surpresa se confirmou e a escola terminou a apuração em primeiro lugar. O quesito comissão de frente foi o único que não alcançou os 30 pontos, foram duas notas 9.9, uma nota 10 e um 9.8 (nota descartada), ainda assim as notas não foram capazes de atrapalhar a agremiação que fechou a apuração com 269.8, apenas um décimo a frente da Unidos da Tijuca, com 269.7. Em terceiro lugar Portela, 269.7, seguida de Salgueiro, Beija-Flor, Imperatriz, Grande Rio, Vila Isabel, São Clemente, Mocidade, União da Ilha e a rebaixada para a Série A foi a Estácio de Sá com 265.
Contexto do ano
Depois de amargar o décimo lugar no ano anterior, perder o intérprete oficial durante o pré-carnaval, o saudoso Luizito, e apostar num carnavalesco que assinaria seu primeiro carnaval no Grupo Especial, o desfile da Mangueira era muito esperado, também, por conta do enredo. Mas existia uma interrogação na cabeça do sambista: O que esperar da Mangueira?
“A Mangueira vinha de resultados ruins e eu imaginava que caso eu conseguisse ter uma colocação um pouquinho melhor já seria um ganho. Imaginei que o julgamento iria desprestigiar um novato que até aquele momento só tinha um único carnaval – em 2015, na Caprichosos de Pilares – no currículo. Eu imaginava, na busca de um conforto pessoal, que uma colocação melhor do que o nono ou décimo lugar seria um ganho. Voltar nas campeãs era, pra mim, algo distante mediante ao cenário. Foram longos meses de olhares atravessados e muita desconfiança em cima do trabalho de um desconhecido que tinha como agravante no currículo a juventude e a inexperiência. Eu cheguei na Mangueira sem ter ‘nome’. Apesar de me chamar Leandro, eu era o rapaz, o menino ou o garoto da Mangueira. Depois do resultado que rompeu o jejum da escola e me trouxe o primeiro campeonato, passei a ser chamado de Leandro Vieira”, explicou o carnavalesco em entrevista ao site CARNAVALESCO.
Num ano de grandes enredos e sambas, a Mangueira fechou o segundo dia de desfiles mantendo o alto nível. Era o retorno de uma das principais instituições culturais do país ao pódio. Estácio de Sá, União da Ilha, Beija-Flor, Grande Rio, Mocidade, Unidos da Tijuca, Vila Isabel, Salgueiro, São Clemente, Portela e Imperatriz abrilhantaram a disputa do Grupo Especial no último ano do mandato do prefeito Eduardo Paes, no ano em que a cidade do Rio de Janeiro receberia as Olimpíadas.
“Esse campeonato foi muito resiliente para nós mangueirenses que vivemos o processo inteiro. O Leandro trouxe uma esperança de renovação pra gente. Esse carnaval, a dor que a perda do Luizito causou pra gente, um cara que foi muito participativo, muito presente que acompanhou meu início como rainha de bateria me dando muita força e diretriz. Eu aprendi muito com ele. Então, ganhar o carnaval de 2016 coroou a Mangueira, era como se nós tivéssemos sido abraçados por Deus e nossa ancestralidade, foi um momento incrível. Jamais vou esquecer da energia do desfile, foi algo inenarrável. Todo mundo que presenciou, dentro ou fora, sabe que a energia daquele desfile foi surreal. Eu lembro do início, quando a sirene tocou e do final, eu só senti. Mas um momento que jamais vou esquecer foi da chegada do troféu no morro, aos pés do morro da Mangueira. Foi o que mais me marcou”, encerra Evelyn.