Por Leonardo Antan
Se hoje é o enredo o guia, ponto de partida de uma festa que se levanta, como vimos na primeira coluna, nem sempre foi assim. No texto de hoje, vamos fazer um passeio mais histórico pelas transformações que as narrativas das escolas de samba passaram, sempre afinadas com seus momentos sociais. Nem sempre houve ligação entre o visual e o musical, em uma narrativa única e que se completavam, como entendemos hoje. O enredo podia ser uma festa na Bahia, as fantasias da corte francesa, com direito a peruca Luís XIV, e cantar as dores de cotovelo de um malandro por uma cabrocha.
Os anos 1930 foram fundamentais nos rumos formadores das agremiações, surgidas entre o desejo de legitimar o samba e a necessidade de uma manifestação que representasse a cultura popular. Nesse momento, duas escolas seriam superimportantes. De um lado, em 1939, a Vizinha Faladeira apresentaria a história do filme Branca de Neves e Sete Anões, então recém lançado, fugindo dos temas nacionais. Por isso, a escola foi acusada de estrangeirismo e de protesto de outros sambistas, num curioso episódio. No mesmo ano, quem lutou para defender as tradições foi a Portela que apresentou o que seria a primeira união entre visual e samba, com Teste ao Samba, mesmo que ainda tímida. Paulo da Portela se transformou em professor e entregou diplomas para componentes vestidos de aluno, sob um quadro-negro como alegoria, num samba que falava do universo escolar.
Buscando a aceitação social, as escolas se entregaram aos temas nacionais, não por imposição do governo populista de Getúlio Vargas, mas fruto de um processo de negociação. Assim, as escolas negras fizeram enredos chapa-brancas, louvando heróis nacionais, apesar de se afirmarem na batida diaspórica dos tambores.
Tudo mudou na virada dos anos 50 para a década de 60, quando Nelson de Andrade levou o casal Dirceu e Maria Luise Nery para fazer um enredo sobre Debret no Salgueiro. Um ano depois, Pamplona se tornou líder intelectual de um grupo que mudaria os enredos para sempre. Com “Quilombo dos Palmares” contou a história do então desconhecido quilombo liderado por Zumbi dos Palmares. Exaltando o negro pro mundo inteiro cantar, o grupo de artistas da Escola de Belas Artes e do Theatro Municipal imporiam transformações definitivas nas escolas de samba. O ano mais decisivo seria 1963, quando Arlindo Rodrigues assinaria sozinho – Pamplona estava viajando na Alemanha – o seminal Xica da Silva. Com uma narrativa bem amarrada, com início meio e fim, além de figurinos aliados a época que estava sendo retratada.
Surgia um novo paradigma. Foi uma década negra na Academia alvirrubra. Cantando Chico Rei, Dona Beija, a Bahia, o carnaval carioca e terminando em êxtase saudando um rei negro na corte de Maurício de Nassau. A história era mais um causo fora das narrativas oficias, fruto da pesquisa de Maria Augusta.
O sucesso da Academia e seus artistas não poderia deixar de surgir novas repostas e modelos, em 1972, ia surgir uma voz artística dissonante. De olho nas transformações estéticas, um pernambucano de cabelo enrolado deixou de lado a “erudição” e fez o primeiro enredo sobre uma figura de massa, que não era histórica, nem nobre, mas sim Carmen Miranda. Na Serrinha, transformou a avenida num teatro de revista, uma chanchada no asfalto, não traçando uma simples biografia, mas em diversos quadros alegóricos a história da Pequena Notável.
Seguindo a década, os enredos mudaram de novo. Pamplona e Arlindo saíram do Salgueiro, deixando seus pupilos. Maria Augusta e Joãosinho Trinta definiriam os rumos das escolas de samba então, cada um a seu modo. De um lado, João cresceu as alegorias, colocou tudo para girar, fez tudo aumentar de tamanho e não deixou faltar brilho. Nas narrativas, inseriu o delírio. Transformou palácios em ilhas encantadas, viajou para minas distantes e provou que sonhar com rei dava leão. Do outro lado, Augusta abriu uma nova possibilidade, com a sutileza de domingos, deixou de lado a história e contou o cotidiano, tudo no melhor bom, bonito e barato. O amanhã como seria?
Seguiram as transformações, com a espetacularização dos desfiles. Tudo virou espetáculo. Os anos 80 guardavam surpresas. Com as transformações da sociedade em meio a ditadura civil-militar, entre contestações e enredos que apoiaram o regime, surgiram vozes políticas e marginais. Já no primeiro ano, Fernando Pinto pediu “Anistia” em sua Tropicália Maravilha. Logo depois, um matemático contou a inflação das feiras livres. Pedindo as diretas, Luiz Fernando Reis na Caprichosos de Pilares transformou plebeus em nobres saudando o humor. Na saudade de tempos melhores, pediu a volta do tempo que diretamente o povo escolhia o presidente. Era política e sociedade ecoando no carnaval em seu estado sublime, na voz das ruas de um país em transformação. E de uma festa também.
E no embalo do passado, alguns foram para o futuro. Num delírio tropical, sambistas viajaram para a lua capitaneados por Fernando Pinto, o carnavalesco tropicalista. E ainda na onda do terceiro milênio, índios punks expulsaram o colonizador europeu para formar sua própria cidade lendária. Era simplicidade, alegoria, analogia e crítica pelas demarcação das terras indígenas. Uma cidade a sorrir, em um delírio de um país melhor. Pinto e Reis
foram protagonistas em meio aos pupilos da academia, um a seu modo realista, irônico e conceitual. Outro com seus devaneios tropicalistas, irreverentes e celebratórios. Nesse caldeirão, havia ainda a crueza preto e amarela, que lembrou capitães de asfalto, casais que não tinha casa e avisou que o samba tinha sambado. A crítica entrou na pauta, mas nunca ganhou um carnaval.
Tudo desses anos conturbados desaguariam num ano inesquecível. Em um embate final e magistral da década mais politizada do carnaval, a narrativa oficial e oficiosa se enfrentaram. De um lado, um país onde Isabel era a heroína e o Marechal se tornou presidente. Do outro, toda a sujeira de ratos e urubus que não nos deixam em paz. Na disputa, venceu a versão chapa branca, consolidando um olhar apaziguador das agremiações.
Nas viradas da vida, novos embates surgiram. Noventa chegou. Entre as histórias de causos curiosos, a lenda de índios em terras europeias e jegues escondidos na história. Com a promessa dos anos 2000, os enredos beijaram a ciência. Cantaram criadores e criaturas, falaram das trevas e da luz, no renascimento de um gênio.
Com a virada do milênio, a grana começou a valer mais do que nunca e bancar o carnaval, viajamos pelas mais diversas cidades, tomamos voos para lugares distantes, louvamos empresas duvidosas e tomamos até iogurtes amargos, que nos fizeram repensar nossos rumos. Distantes do públicos? A aproximação veio de segredos perdidos, de reinos imaginados. A narrativa fragmentada de um Rei do Pop. Em meio a hollywoodização, a voz popular ecoou novamente e arrebatou. Um novo discurso de Brasil surgiu, lembrando de santos, orixás, na voz da Menina de Oyá. E em meio à crise política nacional, as escolas se politizaram de novo. Vampiros, Fantoches, Bispos, Prefeitos, Ratos, Bandidos. Qual narrativa ganharia? A crítica ganhou o carnaval. E agora?
A avenida é divã do Brasil. Reflexo das nossas mudanças. E segue em transformação.