Por João Gustavo Melo*
Sempre algumas folhinhas à frente no calendário, as escolas de samba antecipam o cenário do país em 2020. Já se sabia da agonia brasileira com a ascensão da extrema-direita e da onda conservadora no Brasil. Censura, negação da diversidade, misoginia, homofobia, intolerância religiosa, extermínio de grupos minorizados, racismo e mil e um efeitos colaterais do voto irracional de 2018 e dos golpes contra a democracia aprofundam o colapso que as instituições oficiais teimam em não enxergar. Os sambas escolhidos para o próximo Carnaval ajudam a construir artisticamente um inventário do estrago de levar ao poder criaturas loucas e doentes seguidas por uma massa seduzida por um discurso de ódio, horror e preconceitos que foram evocados como demônios dormidos na caverna da baixeza moral. A agenda de aberrações violentas com que nos deparamos se atualiza diariamente. Mas em fevereiro estaremos amplificado o som dos silenciados em críticas e reflexões levadas para a grande ágora da folia, a Marquês de Sapucaí.
Instituições negociadoras desde sempre, as agremiações sabem que precisam se conectar com o povo por meio de discursos pertinentes e aderentes, em narrativas em que os “mitos” têm que ser destronados. Por isso, mesmo aquele dirigente, compositor, carnavalesco, pesquisador, trabalhador ou componente simpático à política da morte explicitamente implentada pelos atuais governantes – sim, eles existem e aos montes – vai cantar de peito aberto que não se curva a bispo ou capitão ou outros versos de insubmissão que vão ecoar na Avenida.
Talvez nem precisasse de tanto. Só o fato de um surdo bater enquanto a política de silenciamento e violência se levanta contra batuques e danças dos corpos, já é si a maior manifestação crítica que se pode levar à esfera pública, com a mais potente e revolucionária das armas: a alegria. Mas o canto terá maior repercussão se aderir a um discurso latente no imaginário popular, com todas as suas intenções éticas, estéticas e mercadológicas. Enfim, 2020 está aí com todas as tensões derramadas na pista. Afinal, são elas que fazem com que o Carnaval e a arte saiam fortalecidos em tempos de aniquilamento do pensar. A nação que aos poucos vai caindo na real depois do leite derramado precisa mais do que nunca exorcizar os monstros que ajudou a acordar. A folia é o fogo que há de nos reconstituir.
* João Gustavo Melo é jornalista