Por Aydano André Motta
Aqueles 800 metros (ou quase isso) entre a Presidente Vargas e a praça redonda onde se dispersa em direção à vida real – contribuição maluca dos últimos que cuidaram dessa festa – são, na verdade, um terreiro. Lugar de fundamento. Respeitou, valorizou, considerou? Sucesso garantido. Virou as costas, negou, dispensou? Como se diz hoje em dia, vai dar ruim.
Fundamento – a chave.
No certo zero a zero da primeira metade da odisseia dos bambas na Sapucaí, quem desafiou os preceitos do babado se estragou. Nos momentos em que se fez Carnaval, no
conceito criado e aperfeiçoado por tanto artista incrível – Paulo, Cartola, Pamplona, Silas, André, João… –, tudo se encaixou à perfeição. Nos outros…
O Salgueiro serve de exemplo emblemático. O sonhado enredo sobre Xangô deu no melhor samba do ano, que conduziu a escola de maneira magistral na primeira metade da apresentação. Sidclei e Marcella, mestre-sala e porta-bandeira, flutuaram tradicionais, leves, vigorosos, espetaculares.
(A dança do casal é fundamento perfeito, dispensa invencionices como a que vitimou Diogo e Veronica, guardiões do pavilhão essencial do Império Serrano. Os dois, coitados, tinham de subir num platô para evoluir. Desrespeito com o público da frisa, que, encoberto pela estrutura, teve de acompanhar dos telões da avenida; e o vento mais forte enrolou a bandeira em dois módulos de julgamento. Uma lástima que resume o trágico desfile imperial, e deveria ser proibida pelo regulamento.)
De volta ao Salgueiro: a plateia se deixou enfeitiçar, ensaiando aquela conexão que materializa a mágica toda. O Carnaval também esteve na referência ao Papa – sucessor
do trono de São Pedro, sincretizado com o orixá na umbanda –, num excelente Ailton Graça de pontífice negro no Papamóvel. Humor está no fundamento.
Mas a vermelho e branco foi murchando e cometeu erros consideráveis. Esqueceu, por exemplo, um dos mitos essenciais de Xangô, o da disputa entre suas mulheres – Iansã, Obá, que corta a orelha por ele, e Oxum –, ficou quase clandestino no desfile. (Havia apenas componentes de um carro fantasiadas como as Yabás.) E olha que, pecado ainda maior, estava mencionado no samba – “No vento, a sedução (Oyá)/ O verdadeiro amor (Oraiêiêô)/ E no sacrifício de Obà (Obà Xi Obà)”. Alex de Souza preferiu a crítica social, com referências até ao STF, por Xangô ser o orixá da Justiça.
Outro bom momento da noite veio com a Viradouro – sim, de Paulo Barros, que, como na passagem pela Portela, respeitou mais o fundamento carnavalesco, sem abrir mão das suas amadas pirotecnias hollywoodianas. Alegorias bem-acabadas, conjugando o visual à evolução dos componentes, emolduraram as ideias circenses, como a das bruxas. Faltou um enredo bem amarrado – tente explicar o da Viradouro; está longe de ser simples –, mas tudo indica que a turma de Niterói viajará da Série A ao Sábado de Campeãs em apenas um ano.
Terá, provavelmente, a companhia da Tijuca, que cometeu pecado inverso, o da pouca ousadia. O Cristo europeu, renascentista, merecia a atualização que até a ciência reconheceu – nem por milagre alguém nascido no Oriente Médio pode ter aquela pele branca, aquele cabelo. Bênção mesmo é a bateria, sob a regência sempre impecável de
Mestre Casagrande, papa (literalmente!) do ritmo e da pura cadência. Fundamento!
E se chega à Beija-Flor. A luta pelo bi, com o necessário enredo dos 70 anos da escola, tinha como adversário o pior samba dos últimos três carnavais – cantado burocraticamente até pela mítica comunidade. E se esvaneceu na mistura dos históricos desfiles nilopolitanos
com fábulas infantis (Por quê? Pra quê?) encenadas nas alegorias, novo conceito adotado na azul e branco multicampeã.
A tese, por lá, prega que o público enjoou de carros tradicionais, destaques e composições. A contemporaneidade pediria, então, teatralizações que pavimentariam a sonhada interação. Só que a arte ali é o Carnaval, não o teatro. As minipeças viram, na verdade, pessoas fantasiadas correndo a esmo, de olhos arregalados e cantando o samba, que não casa com a “trama” (na letra do hino nilopolitano, não havia a galinha dos ovos de ouro,
tampouco a raposa e as uvas, muito menos a cigarra e a formiga). Na plateia, produz somente enfado.
Porque os bambas, que conseguem muito, não podem tudo. Basta ver o motoqueiro fantasma de Paulo Barros na Viradouro – no filme, é um bólido flamejante que cair o
queixo e arregalar os olhos. Na avenida vira… um motoqueiro que desce a rampa devagar para não causar nenhum acidente.
Na Passarela, a arte é outra – e dispensa apêndices alienígenas. Bora fazer Carnaval que é muito, muito melhor!