Em 102 anos de sua gigantesca história, a Portela teve apenas duas mulheres como diretoras de algum naipe em sua bateria. Um cargo majoritariamente masculino, mesmo com um número significativo de mulheres ritmistas, uma barreira ainda existente. Mas suplantada por algumas mulheres corajosas, valentes e talentosas, como Giovanna Paglia. Mineira de Ituiutaba, patinadora artística na adolescência, onde seu corpo começou a desenvolver um lado artístico e rítmico, radicada em Brasília, lugar onde conheceu e se apaixonou pelo xequerê, ela se define como nômade, descobrindo e vivenciando diferentes locais, experiências que também a enriquecem como musicista e ritmista. Criadora do Agbelas, importante movimento de percussão afro-brasileira, agora experimenta, pela primeira vez, a sensação de tocar e comandar ritmistas em uma escola de samba. Mais um desafio para quem se permite tanto experienciar o que a vida lhe entrega.

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giopaglia
Foto; Luiz Gustavo/CARNAVALESCO

“Já em Brasília, fui a uma oficina de blocos de vários ritmos, com diferentes instrumentos. O professor me deu o xequerê e me disse para eu copiar minha colega. Como assim eu aprenderia simplesmente copiando alguém? Isso mexeu com minha veia educacional, que sempre tive, e me deu vontade de fazer as pessoas aprenderem a tocar o instrumento diferente de como me foi ensinado. Então passei a querer aprofundar no fundamento, na mágica da cabaça, no que isso representa para além da beleza do instrumento que vai na frente. Aí entrei nesse mergulho de querer ensinar, pois, antes mesmo de me reconhecer como artista, eu sou arte-educadora. Quando o xequerê chegou à minha mão, eu queria ensinar; só há dois anos rolou a virada de chave de, além de professora, me enxergar como ritmista, musicista e sambista”, declarou Giovanna, que, como diretora dos xequerês da Tabajara do Samba, exercerá esse lado educador, comandando uma ala com dez mulheres, formando a primeira fila da bateria, uma posição nobre.

O desejo de ensinar foi o maior impulsionamento para a criação do movimento Agbelas, surgido em 2019. O projeto visa não só ensinar a prática do instrumento, mas também falar de sua história, sua ancestralidade e todo o seu significado. Atualmente, o projeto conta com cerca de 3.000 alunas em todo o mundo, em aulas presenciais e online. Uma iniciativa que ensina não apenas as inscritas, mas também a própria Giovanna. “O Agbelas me ensinou a escutar, silenciar e escutar a mim mesma antes de tudo, aquela voz interna que muitas vezes a gente não quer ouvir, mas, principalmente, escutar o coletivo. Quando trabalhamos com muitas mulheres juntas, lidamos com inúmeras feridas, traumas, muitas faltas. A Agbelas, antes de ser um movimento educacional, é um espaço de acolhimento, é um grande movimento. Vejo nosso projeto como um portal de entrada para muitas mulheres se conectarem com a arte, um lugar onde elas se sentem passíveis de transformação. Tenho várias alunas que seguiram outras vertentes artísticas: flautista, perna de pau, maquiadora, saxofonista, dançarina; temos uma menina que virou artesã do nosso ateliê e faz xequerê para o mundo inteiro, e essa transformação também ocorreu comigo, que, quando percebi, estava me transformando em luthier, cantora, dançarina, maestrina — tudo surgiu a partir dessa vivência”, afirma.

Nos últimos anos, o movimento ganhou notoriedade ao participar de apresentações com nomes importantes da música, como Margareth Menezes, Luiz Caldas e Carlinhos Brown, que se tornou padrinho do grupo. Esse impulso certamente contribuiu para o convite que Giovanna recebeu para ser diretora da Portela, mas ela já tinha iniciado uma tentativa de tocar no Carnaval carioca, e antes da azul e branco quase se tornou ritmista da Mangueira.

“Honrando minha vida nômade, decidi vir para o Rio de Janeiro e me aproximar do universo das escolas de samba. O conceito de escola de samba e sua comunidade me chamaram de alguma forma, e ver minhas amigas do xequerê brilhando na Mangueira me permitiu estar mais perto dessa realidade. Em novembro do ano passado fui à quadra, participei de um ensaio e confirmei que era realmente isso que eu queria. Ensaiei outra vez, porém não foram abertas novas vagas para a ala e fiquei de fora. Cheguei a pensar em voltar para Salvador ou ir para Recife, mas um grande amigo que fundou o naipe de xequerês da Mangueira me avisou que a Portela estava abrindo a ala do instrumento. Compareci à quadra e entrei no naipe; pouco tempo depois recebi o convite para comandar essas ritmistas”.

Dirigir um naipe em uma das escolas mais tradicionais do varnaval é uma grande honra e responsabilidade. Ser a terceira mulher a alcançar o feito em mais de um século de história tem uma representatividade imensa.

“Estar na linha de frente regendo dez mulheres, carregando um útero na mão, que é a cabaça, é uma honra que não tem tamanho. Uma responsabilidade gigantesca, um trabalho árduo, mas quando o mestre Vitinho me disse que a bateria precisava deste trabalho, eu não hesitei em contribuir para a Portela, para a Tabajara do Samba. Ter tocado no minidesfile foi maravilhoso. Eu, que sou amante de tocar este instrumento, no desfile não estarei tocando, estarei de costas, cumprindo uma missão. Às vezes, pensar nisso assusta, mas o trabalho com o Vitinho está sendo bacana, ele escuta muito. Hoje já estreie a emoção, o nervosismo; agora é deixar aflorar o restante das emoções e cumprir essa missão tão bonita”, ressaltou uma vibrante Giovanna.

Se depender da energia e da entrega dela ao xequerê, a Portela virá ainda mais carregada no dendê.