Nascedouro (Introdução)

Para o carnaval de 2026, a S.R.E.S. Lins Imperial encontra inspiração na Água. Ela, divina, símbolo de origem, memória e permanência. Em seu desenho geográfico natural, está registrada nos topônimos de duas comunidades do Complexo do Lins: Cachoeira Grande e Cachoeirinha, estreitando a relação da Lins Imperial com esse elemento sagrado. As Águas da Lins Imperial agora confluem com as Cristalinas de Cachoeiras de Macacu, uma vez que serão percorridos os trajetos que refletem a alma da criação da cidade, por meio das cosmogonias dos Bantu e dos Puri e, afluentemente, expandindo-se em práticas locais ligadas à Água, como aquelas das comunidades tradicionais, festividades populares e religiosas, além das iniciativas de preservação ambiental.

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Macacu — No Caminho das Águas Cristalinas, reflete a Alma da Criação

No princípio, tudo aqui era Água. Imenso azul. Infinito cristalino. Sem Ela, Divina, reverenciada nas cosmogonias dos Bantu e dos Puri, não há origem. Ou mesmo porvir. É a Água quem risca o chão como quem escreve, na folha em branco, a vida; Escritora nossa de uma história sem fim (que nunca seca). É fluida, mutável, fértil. E por Ela, “ah, de ser eu… Água” … Da cabeça aos pés. E me curvo ao “Alcance o seu dizer. Ter água no corpo é merecer ”.

E é Nela que mergulhamos para nos descobrir. Foi assim, desse mergulho, que a nós se revelou: gestada do estado líquido, nasceu Macacu. Jorraram quedas d’Água, nossas cachoeiras. Tomaram o seu percurso os afluentes. Desaguou-se a existência, entranhando-se sob a terra — tornando-a fecunda —, beijando as margens, a partir de onde habitamos, construímos nossas histórias, partilhamos o dia a dia, organizamo-nos enquanto sociedade. Seguimos o fluxo das Águas que nos banham, emoldurado por uma natureza que veste a Serra com a presença de cedros, jatobás, ipês coloridos, quaresmeiras e pitangueiras, orquídeas e bromélias, samambaias, arbustos e plantas medicinais de todas as sortes; mas também de lontras, muriquis, jaguatiricas, gatos-do-mato, sabiás-laranjeiras, tucanos, calandrias, araçás, mariquitas e beija-flores. A vida floresce à sua volta. É a Água quem costura os dias, desenha os caminhos e nos ensina o compasso do agir.

Não há cotidiano aqui que não passe pela Água. Entendemos que viver — e não apenas existir — é acompanhar o ritmo das correntes. Da etnografia do Mar pra Dentro é só Água: a florescer a taboa, a lavar as roupas, a macerar as ervas, a regar o matumbo, a sacralizar o banho, a limpar as mãos benditas, a emergir o sustento o sustento de muitas famílias. E tudo isso sob a sentinela da Igreja de Sant’Anna, matriz da nossa cidade, erguida à margem do caminho de nossas Águas. A Água nos atravessa a todo tempo, a todo instante. E é por isso que nela mergulhamos fundo — sempre —, porque Ela que nos constitui.

Tal qual a Água, que, por sua natureza adaptável, ora é doce, ora salgada; algumas vezes lenta, outras, violenta; por vezes escura, outras, translúcida, nossas tradições, que nos marcam, também são muitas. Somos corpos que celebram a Água — nossa origem, nossa travessia, nossa permanência. Nossos batuques despertam como sinfonia o pulso das correntezas. Na procissão à Imaculada Conceição, acompanhamos o rio enquanto entoamos a Ave Maria, num cortejo que percorre o entorno das Águas, levando-nos aos domínios da Santa Sé. O balanço ritmado em ijexá reflete a devoção do povo de Santo que canta que nesta cidade todo mundo é D’Oxum — Essa que “quando pisou a terra, fez a vida tocar o mundo” . Os foliões entram nas Águas, fantasiados, pois se vestir de alegria exige mergulhar na correnteza de felicidade. No esplendor vibrante do Carnaval das Águas Cristalinas, o AfroFolia faz a lavagem das ruas purificando a cidade. Somos um rio caudaloso de cores, sons e alegria, que inunda cada esquina com energia contagiante. A vida se celebra aqui, pois a Água enche de sentido nossa existência.

As nossas Águas, numa dança de movimentos que se anuncia nas cristas da serra buscando o refúgio do oceano, cortando o horizonte que se dissolve no verde dos montes mesclado à alvorada rosa, enfrenta, no curso, desafios. No seu caminho, há muitos desvios. Surgem mãos que ferem, que desmatam, que desviam, que secam. O seu percurso sinuoso se vê interrompido por assoreamentos, estiagens, barragens. Eis o fluxo da vida em risco. Quando a Água adoece, adoecemos com ela. Quando Ela é ferida, é a nossa permanência que está em risco. Talvez não há de se romper um novo amanhã…

Mas há de haver quem novamente vigie o leito. Há de haver quem (re)plante. Há de haver os que desfaçam as barragens, possibilitando que o rio siga o seu curso. Isso só será possível se, como um dia nos ensinaram nossos ancestrais, voltarmos a divinizar a nossa Água, a vê-la como sagrada. É preciso olhar para aquilo que fazemos por Ela, e não contra Ela.

Enquanto houver jequitibás e sapucaieiras testemunhando a nossa história, haverá memória. Enquanto houver Água, haverá caminho. Enquanto houver caminho, haverá retorno. E que, ao fim de tudo, quando todo mundo se esquecer de si, será Ela — a Água — Quem nos lembrará de novo como (re)começar.

Enredistas: Kitalesi (Arnaldo César Roque) e Mateus Pranto
Carnavalescos: Agnaldo Correia e Edgley Correa
Pesquisa, texto e desenvolvimento: Kitalesi (Arnaldo César Roque) e Mateus Pranto

Agradecemos a Ekedy Lucinha Pessoa e ao Ilê Axé Omin, aos artesãos Divino Soares e Marta da Silva Lopes Soares, à professora Celeida Rocha, ao historiador Vinícius Maia, a Líbia Figueira, ao Rômulo Rolandi, a Gleidson Moraes, ao secretário de cultura Lucas Bueno e ao prefeito Rafael Miranda, pelo tempo disposto para compartilhar conosco a respeito daquilo que tanto os encantam: Cachoeiras de Macacu e as suas Águas Cristalinas, reflexo e encanto que nasce da própria natureza.

Obras consultadas

As histórias do Rio, Macacu. Disponível em: <https://youtu.be/-4s5sVR05HQ?si=D0BjvjHk5BWGQ8ls>.

Documentário Estrelas da Terra. Disponível em: <https://youtu.be/yj2fJgL_Nmo?feature=shared>.

Documentário Estrelas da Terra II. Disponível em: <https://youtu.be/8lvw2CkLIsE?si=w_KBYCDSgkXI6sCw>.

Grupo Cultural Orgulho Negro de Cachoeiras de Macacu (RJ). Há muitas mães. (documentário). Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=duhMaGTqje4>.

Guapiaçu, da nascente ao mar. Disponível em: <https://projetoguapiacu.org/wp-content/uploads/2023/02/Livro-REDAGUA_WEB.pdf>.

KRENAK, Ailton. Futuro Ancestral. Companhia das Letras, 2022.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras, 2020.

Lei do Sistema Municipal de Cultura. Disponível em: <www.cachoeirasdemacacu.rj.leg.br/banco-de-legislacoes-e-normas/legislacao-municipal/leis-ordinarias/2012/lei1920.pdf>.

NETO, João Augusto dos Reis. Pensar-Viver-Água em Oxum para (re)encantar o mundo. Revista Calundu, vol.4, n.2, Jul-Dez 2020.

Paola Odónilè. Òpárá de Òsùn: quando tudo nasce (curta). Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=G9oueZFnNB8>.

Reportagem da TV Globo sobre a comunidade tradicional Hervana, localizada em Cachoeiras de Macacu. Disponível em: <https://youtu.be/q22TcPl_oZk?si=B8IXXpj1TZ3-nnmm>.