Enredo: “A Gargalhada é o Xamego da Vida!”

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– Respeitável Público, O Grande Circo Falcão do Engenho de Dentro, apresentado por mim, o Falcão, tem o orgulho de desfilar “A Gargalhada é o Xamego da Vida!”, estrelando o Palhaço Xamego – que, a propósito, nasceu antes da nossa escola, com uma engraçadinha diferença de 64 anos, no estonteante 21 de março. A caravana anuncia que vai começar o espetáculo!

Tomem seus lugares, pois as gargalhadas estão garantidas!

Nosso cortejo segue apresentando os cômicos medievais, que dançam rodopiantes e desfraldam o pavilhão deste circo como forma de homenagear a tradição da palhaçaria,apenas como pragmatismo mundano…

Ouço os tambores tocando, vejam quem vem vindo: ele, o Palhaço Xamego!

– Mas aqui, nosso riso é mesmo coisa de preto, circo de preto, o circo Teatro Guarany!

O sonho do Guarany começa muito antes de mim, com a minha avó, Leopoldina Souza, uma guerreira que foi escravizada em um tempo que eu perco de vista… Do ventre dela nasceu livre o meu pai, João Alves da Silva; ele foi um homem que em 1901 – 13 anos após o fim da escravidão – já era dono de circo. Meu pai construiu uma Grande Família de muita fé. A Senhora do Rosário esteve sempre conosco, nos guiando, nos rodeando e dando a alegria de viver a comunhão de um picadeiro.

Com o crescimento do circo, nós fomos ganhar mundo: armamos o picadeiro, hasteamos a lona e, de gargalhada em gargalhada, rodamos o Brasil em um comboio de alegria e risada. Por onde passávamos era sucesso! Eu era só uma criança e cresci rodeada por uma festa de muitas cores, números brilhantes e o palhaço Gostoso – meu irmão – um bonitão que conquistava um punhado de coração! Uma Família de Artistas que acolhia com os encantos do Circo.

Eu e minha irmã Ephigênia, apaixonadas pelo ofício da família, começamos na arte circense: duas cantoras que sonhavam com o rádio e encantavam no picadeiro. Tínhamos o tio Benjamin como inspiração – sim, Benjamin de Oliveira, o grande Palhaço Negro do Brasil. Eu, de vez em quando imitava os trejeitos do Charles Chaplin, que via vez ou outra no cinema.

Cresci ouvindo as histórias do meu pai dizendo sobre a luta do povo negro no Brasil…

Nessas Histórias uma Flor (1)
(A Camélia)
Estava Sempre Presente
(A Camélia)
Era Flor da Resistência
(A Camélia)
Além de Ser Perfumada
(A Camélia)

Assumi ela como força, colocava sempre nas minhas apresentações e, de repente, ela virou meu símbolo.

Um dia, me vi diante da função de assumir o circo para substituir o tal palhaço Gostoso e aí entrei em cena: Palhaço Xamego. Eu sempre ouvia que ser palhaço não era coisa de mulher. (Pensam que liguei?). Sei que a gargalhada é coisa boa, transforma o mundo e pode ser libertadora. Eu uso para espantar a tristeza… Esegui assim, gargalhando, com a minha Camélia presa na lapela.
Certo dia ouvi um tal de Rei do Baião… Junto de sua Sanfona, vinha com sua companheira de cantoria e tome Xote…

‘O xamêgo dá prazer (2)
O xamêgo faz sofrer
O xamêgo às vezes dói
Às vezes não
O xamêgo às vezes rói
O coração’

Embalada nesse xote bom, meu coração bateu por um tal de Reis… ‘Parpitou’ tanto, mas tanto que chegou a apertar de alegria… Entrei numa dança gostosa, caí nas gargalhadas de amor. E,então, viramos uma dupla: no amor e no palco!

“Ai que Xamego bom, Ai que Xamego Bom, Ai que Xamego bom…” (3)

Com o passar da vida, nossa Família ganhou mais duas Gargalhadinhas: os nossos filhos Aristeu e Daise. Cuidava deles com amor e nunca dei mole para ser descoberta. Dentro do circo é o palhaço que impera: ele brinca com gato e cachorro; faz piada de conversar com a galinha; tem um amigão que é um macaco camarada e arranca sempre muita gargalhada…

Certa vez, vi levantarem a Lona. De longe, avistei um olhar muito curioso observando a elefanta que me ajudava a cuidar dos ‘niños’ e o palhaço – eu – sendo ama de leite.

Aristeu e Daise foram ficando pelo picadeiro e muito sabidos, foram crescendo artistas… Afinal, eram filhos do Xamego e do Reis.

‘Todo mundo quer saber (4)
O que é o xamêgo
Ninguém sabe se ele é branco
Se é mulato ou negro…’

Porque o segredo do palhaço era ser uma mulher inspiradora e alegre: Maria Eliza Alves dos Reis! Mãe carinhosa que estudava junto, costurava, era grande cozinheira e doceira.

A vida foi tomando caminhos difíceis e nosso circo foi perdendo as cores. Desarmou a lona… As coisas simples da vida viraram nosso palco, como um sambinha de riso frouxo pelas calçadas. E, com o tempo, Xamego e Reis foram se tornando um casal de velhinhos que amava o circo, apoiava a arte circense e, com muita paixão, não deixava de sorrir – a alegria estava sempre estampada no meu rosto. Sempre disse que a Gargalhada é um remédio para a vida, mesmo quando o desânimo parece que vai tomar conta do nosso coração… Precisamos entender que a vida é curta demais para deixar a tristeza nos dominar. Quem vive gargalhando, vive mais e‘mió’!

E, de repente, suspirei e me tornei uma estrela em gargalhada…”

– Por isso eu, o Falcão, vos digo que Xamego passou a ser andarilha de si mesma, sendo uma Mãe que Alimenta (5) no coração de outras mulheres o desejo de ser palhaça e a certeza no poder da gargalhada para mudar o mundo.

Vemos esse chamego naquelas que domam muitos Leões por dia – quem é que não tem um boleto para pagar, hein? Nas que andam na corda bamba, nas que fazem trapézio com as dificuldades, malabarismo com os problemas e vivem a vida como uma grande piada. Elas mostram que gargalhar Não é Delírio não, é Felicidade… (6)

Pelas ruas, o riso contagia as multidões. Veio se espalhando pela história e chamegando aqui, chamegando lá (e acolá), ganhou o seu espaço merecido. Tem gargalhada nas folias, nos blocos e até batendo bola. Mas, a gargalhada é mesmo uma Encruzilhada: um gole de felicidade; o espanto da tristeza; a alegria desmedida; a força de seguir sorrindo.

No palco do Carnaval, o samba faz gargalhada e traz a ‘folie’ para a festa do riso. É preciso sempre celebrar, pois a alegria é a porta onde estão as respostas para as dificuldades da caminhada. Hoje, esse Terreirode Espinguela (7) se torna um grande picadeiro de Folia, onde as gargalhadas ecoam como um toque de alegria – anunciando tempos de felicidade por aqui.

Piscaram os olhos e “Minha Avó Virou Samba!” – sua neta Birota vem dizendo.
Se o samba é o remédio da alma, A Gargalhada é o Xamego da Vida e no Arranco é (todo amor) Xamegadinho e misturado.

Que a Gargalhada viva sempre em nós como esperança!
Viva a Xamego! (Bravo!)

1 Paródia inspirada na música “O Cheiro da Carolina” de Luiz Gonzaga. Composição: Zé Gonzaga / Amorim Roxo. A música foi originalmente lançada no disco Aboios e Vaquejadas (1956).
2 Referência a canção “Xamego” de Luiz Gonzaga. Composição: Luiz Gonzaga / Miguel Lima. Lançada originalmente no disco Xamego (1958).
3 Idem
4 Idem
5 Referência ao nosso carnaval de 2025 “Mães que Alimentam o Sagrado” da Carnavalesca Annik Salmon.
6 Referência ao nosso carnaval de 2024 “Nise – Reimaginação da Loucura” do Carnavalesco Nicolas Gonçalves.
7 Referência ao nosso carnaval de 2023 “Zé Espinguela, Chão do Meu Terreiro” do Carnavalesco Antônio Gonzaga.

Agradecimentos

Agradecemos a Família de Maria Eliza Alves dos Reis pelo carinho e acolhimento em aceitar levar, junto conosco, um pouco da história da sua família para a Marquês de Sapucaí. Daise, sua filha, Mariana, sua Neta, Salim e Juan, foram de uma generosidade extrema em abrirem os acervos da família e ceder matérias, além dos dois documentários produzidos pela família, para colaborar com a pesquisa e a escrita da sinopse. Agradecemos também pela entrega e a participação nas etapas e pelo comprometimento de estar conosco em todo o processo.

Referências Bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Huicitec, 2010.
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1983.
BORNHEIM, Gerd (Org.). Cultura Brasileira – Tradição Contradição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
CASTRO, Alice Viveiros de. O Elogio da Bobagem – Palhaços no Brasil e no Mundo. – Rio de Janeiro: Editora Família Bastos, 2005.
CALLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Tradução de José Garcês Palha. Cotovia, São Paulo, 1990.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
FONTELES, Bené (org.). O Rei e o Baião. Ensaios Antônio Risério … [et al]. – Brasília: Fundação Athos Bulcão, 2010.
HUGO, Victor. Do Grotesco e do Sublime. São Paulo: Perspectiva, 2002.
MILITELLO, Dirce Tangara. Terceiro Sinal. São Paulo: Mercury Produções Artísticas LTDA, 1984.
MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
O reinado do Riso / Texto de Daniel Reis e Maria Elisabeth de Andrade Costa – Rio de Janeiro IPHAN, CNFCP, 2012. 56p. – Catálogo da exposição realizada na Galeria Mestre Vitalino, no período de 22 de agosto a 25 de novembro de 2012.
SIMAS, Luiz Antônio & RUFINO, Luiz. Flecha no Tempo. Rio de Janeiro: Mórula, 2019.
___________. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. – 1° ed. – Rio de Janeiro: Mórula, 2018.
TAPIA, Verônica Ester. Trajetórias artísticas e profissionais de mulheres e circenses. – 1. Ed. – Curitiba: Appris, 2023.
TINHORÃO, José Ramos. Cultura Popular: temas e questões. São Paulo: Editora 34, 2001.

Filmes Consultados

GUARANY – Histórias do Circo dos Pretos; Direção: Mariana Gabriel. Produção: Daise Gabriel e Roberto Salim Gabriel. São Paulo: Di Ôio Produções, 2022.
MINHA Avó Era Palhaço; Direção: Ana Minehira & Mariana Gabriel.Produção: Daise Gabriel, Mariana Gabriel e Roberto Salim Gabriel.São Paulo: Di Ôio Produções, 2016.