LONÃ IFÁ LUCUMÍ

Laroiê, Eleguá! Agô.

No princípio era o axé…

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Quando Olodumare, o supremo criador da existência, do universo e dos orixás, soprou o Emi (energia vital) para que o primeiro ser humano moldado por Obatalá ganhasse vida com seu Orí divinizado, consciente e portador daquele destino, Orunmila estava presente e tudo assistiu. Todos os seres foram conectados energeticamente e os orixás, regentes das forças da natureza, passaram a comandar cada aspecto e expressão da vida humana.

Orunmila, o Èléri Ípìn, a testemunha da criação, portanto, recebeu de Olodumare a dádiva de ser seu porta-voz no oráculo de Ifá para guiar a humanidade pelo bom caminho e cada pessoa ao melhor cumprimento de seu destino na dimensão terrena, o Ayiê, através da comunicação espiritual com a dimensão sobrenatural das divindades, o Orún.

Epá Ojú Olorun! Ifá Ò! (Viva os olhos do Criador! Ele é Ifá!)

Na cidade sagrada de Ilé Ifé, fundada por Odudua e onde os primeiros humanos moldados por Obatalá iniciaram sua caminhada na Terra, Orunmila, o profeta dos destinos e guardião da sabedoria, transmitiu o conhecimento oracular do Ifá aos Babalaôs Iorubás.

Sentados sobre a esteira de palha, aprenderam a decifrar as mensagens de Orunmila contidas nos Odús que se desenham ao jogarem o cordão aberto (o princípio e o fim) trançado com oito metades de favas de Opelê sobre o tabuleiro de madeira Oponifá.

Lònà Ifá (Caminho de Ifá)

Assim, os Babalaôs Iorubás levaram o Ifá praticado na sagrada Ifé, e na cidade de Oyó, mundo antigo afora semeando a palavra de Orunmila. Pelas rotas comerciais para além do Saara, de Kemet à Babilônia, os sacerdotes contaram as histórias e ensinamentos contidos nos Patakis, louvaram Orikis para as divindades e ofereceram os ebós pedidos nos Odús revelados nas caídas dos seus Opelês sobre os Oponifás.

Até que o caminho de Ifá cruzou o Atlântico, à força, acorrentado no destino dos Iorubás escravizados e traficados para a exploração do Novo Mundo. Olokun, divindade soberana dos mares e dos segredos da vida e da morte, transportou em suas águas a tradição religiosa africana até o mar caribenho para que a ancestralidade iorubana fosse recebida pela ancestralidade indígena de Taínos e Ciboneys naquela ilha que seus originários chamavam Cubanacan ou, simplesmente, Cuba.

Mo júbà! Oluku mi! (Vos saúdo! Somos amigos!)

Com a chegada dos Iorubás de Ifé e Oyó em terras cubanas para o trabalho nas fazendas de cana-de-açúcar e café, nasceu a nação Lucumí. Para
o regime escravagista espanhol, lucumis eram todos os cativos iorubanos em geral, porém, os próprios escravizados se identificavam sinalizando suas origens, como: Lucumí-Oyó, Lucumí-Egba, Lucumí- Ekiti, Lucumí-Ijebu…

Sob a irradiação aguerrida de Oggun, o primeiro rei de Ifé, os lucumis levantaram os metais de seus facões diversas vezes contra a tirania dos colonizadores. Na província de Matanzas, a escravizada iorubá Carlota Lucumí liderou a Insurreição do Engenho Triunvirato, que destruiu vários engenhos, eliminou colonos, incendiou fazendas e libertou centenas de escravizados.

Oggun Ye! Mo ye! (Ogum está vivo! Eu estou vivo!)

Matanzas, aliás, foi o berço do Ifá cubano e o pai foi o babalaô Remígio Herrera, o Adechina. Um ex-cativo de engenho açucareiro que, quando alforriado, foi para Nigéria ser consagrado em Oyó. Com a missão dada por Orunmila de fundar o primeiro Cabildo Lucumí na América hispânica, retornou a Cuba trazendo os fundamentos da Regla de Ifá e iniciou o primeiro babaláo em solo cubano: Tata Gaytán.

O Ifá cubano se expandiu e adquiriu caráter próprio. A língua Lucumí assimilou influência de falas indígenas e espanholas e “lucumizou” as
expressões. Altas deidades e Orishas, maiores e menores, formaram o panteão divino. O Obí advinhação com cocos, rachados em quatro partes para que as combinações entre as faces claras (o interior) e escuras (a casca) respondam pelas divindades ao serem lançadas no chão, se tornou marca do Ifá cubano. Os filhos de Orula (Orunmila) iniciados passaram a ser identificados pelo uso do Ileké no pescoço ou do Idefá no pulso esquerdo para lembrar do pacto que Orula fez com a morte para que ela não leve os seus antes do tempo destinado. Ambos feitos de contas verdes e amarelas que representam a união da sabedoria de Orula (o verde do viço das folhas frescas) com a fertilidade de Oshun (o amarelo da decomposição das folhas) que nos lembram do inevitável ciclo da vida.

Para despistar a perseguição aos cultos de matriz africana, Iorubás identificaram seus Orixás com santos católicos e criaram a Santería, também conhecida como Regla de Ocha ou Regla Lucumí, onde o Ifá é o centro oracular divinatório. Se expandiu pela ilha após a Revolução Cubana e ficou ainda mais popular depois que o Estado mudou de ateu para laico com a extinção soviética. Hoje, a mão de Orula está presente na vida de grande parte do povo cubano e os tambores Batá ressoam consagrados em Ifá pelos cabildos de Havana.

Agô Ilé. (Peço licença para entrar)

Existe uma conexão espiritual entre Cuba e o Brasil, enraizada em nossa reverência aos Orixás e aos nossos ancestrais africanos, que nos
enlaçam culturalmente e energeticamente há gerações. O destino quis que o Ifá Lucumí se ramificasse até aqui e se consolidasse no Rio de Janeiro através do Opelê e do Oponifá do Babalaô cubano de linhagem dos veneráveis Adeshina e Tata Gaytán, Rafael Zamora. Dessa bendita rama continua a florescer Babalaôs brasileiros, afilhados, famílias em Ifá e comunidades-terreiro dedicados ao culto de Orunmila.

Num momento tão difícil para a humanidade na Terra como este, com tantos conflitos e desequilíbrios, que Ifá nos guie no caminho para o bom
caráter, respeito e a harmonia entre as pessoas e a natureza. Que Orunmila ordene o mundo nos caminhos do bem.

Iboru Iboya Ibosheshe! (Que nossas súplicas sejam ouvidas!)

Jack Vasconcelos

Referências:
ALCARAZ, José Luis. Santería cubana, rituales y magia. Madrid: Tikal Ediciones, 2013.
ARAÚJO, Leonor Franco de. Sistema filosófico de Ifá. Salvador: Tese (Doutorado em Difusão do Conhecimento) – Programa de Pós-Graduação
Multi-institucional em Difusão do Conhecimento, 2023.
LOPES, Nei. Ifá Lucumí : o resgate da tradição. Rio de Janeiro: Pallas, 2020.
LOPES, Nei; SIMAS, Luiz Antonio. Filosofias Africanas: uma introdução. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2023.
LÓPEZ VALDÉS, Rafael L. Africanos de Cuba. San Juan, Porto Rico: Centro de Estudos Avançados de Porto Rico e Caribe, 2002.
MINTZ, Sidney W. ; PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica. Rio de Janeiro: Pallas e Universidade Candido Mendes, 2003.
PORTUGAL FILHO, Fernandes. Ifá, o senhor do destino: Olórun Ayanmo. São Paulo: Madras, 2010.
SILVA, Sebastião Fernando da. A Filosofia de Òrúnmìlà-Ifá e a formação do Bom Caráter. Goiânia: Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Escola de Formação de Professores e Humanidades, Pontifícia Universidade Católica de Goiás, 2015.