Todo sambista que se preze continua cantando ao ouvir alguém entoar “Balançou, não deu certo, não, pois não passou de ilusão…” ou “Bate o bumbo, lá vem Zé Pereira… e faz Madureira de novo sonhar…”. São versos que transportam qualquer amante do Carnaval a um verdadeiro túnel do tempo, relembrando um dos duelos mais épicos dos desfiles das escolas de samba.
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Há 30 anos, a Imperatriz Leopoldinense conquistava o bicampeonato com o enredo “Mais vale um jegue que me carregue que um camelo que me derrube lá no Ceará”, vencendo a Portela por apenas 0,5 ponto – uma diferença mínima na época. A escola de Madureira, por sua vez, encantou com o lendário “Gosto que me enrosco”, deixando sua marca na história do samba.
A Portela e seu renascimento
Três décadas atrás, a Portela vivia um momento de renascimento após anos de crises políticas e dissidências internas, que resultaram em um jejum de títulos que chegaria a 11 anos em 1995 – e só seria quebrado em 2017. Mas, naquele ano, figuras históricas da escola voltaram a desfilar na Majestade do Samba. Entre elas, Paulinho da Viola, que levou a avenida às lágrimas ao cantar no esquenta seu clássico “Foi um rio que passou em minha vida”. O samba-enredo profético, que convidava Madureira a sonhar novamente, parecia antecipar o que estava por acontecer naquela manhã de segunda-feira de Carnaval.
Naquele tempo, o Grupo Especial contava com impressionantes 18 agremiações, com nove desfiles por noite. A Portela foi a oitava escola a se apresentar no domingo, penúltima da noite. Quando os primeiros raios de sol iluminaram a Sapucaí, um desfile emocionante tomou conta da avenida. A apresentação ficou marcada como um dos momentos mais grandiosos da história portelense, trazendo uma das águias mais belas já vistas, assinada pelo carnavalesco José Félix. Além do acabamento impecável, a escultura era visualmente impactante, com uma máscara nos olhos que lhe conferia ainda mais imponência.
Outro destaque foi o samba de Noca da Portela, Colombo e Gelson, que combinava força e elegância em sua melodia. No carro de som, além de Rixxa, estavam Carlinhos de Pilares, Rogerinho e Celino Dias, garantindo uma interpretação poderosa e emocionante. O enredo “Gosto que me enrosco” trouxe uma belíssima narrativa sobre a história do Carnaval, desde as grandes sociedades até os ranchos e cordões.
As alegorias e fantasias esbanjavam bom gosto, com o azul e branco predominando, mas harmonizados com detalhes em prata e dourado, que abrilhantavam ainda mais o conjunto visual. A Tabajara do Samba manteve uma cadência impecável do início ao fim, garantindo a fluidez do desfile. Quando a escola chegou à Praça da Apoteose, os gritos de “É campeã!” ecoaram pela Sapucaí. Foi uma verdadeira aula de desfile, uma celebração do samba no pé e, sem dúvida, um momento histórico para a Portela.
‘A Portela foi muito Portela em 1995’, diz Júnior Scafura
O atual vice-presidente da Portela, Júnior Scafura, estava presente no desfile de 1995. Filho de Luiz Carlos Scafura, presidente da agremiação na época, ele guarda com carinho as lembranças daquela apresentação histórica.
“Foi um Carnaval com uma magia especial, parecia que os deuses do samba estavam presentes. Tudo deu muito certo, e a Portela estava muito Portela. Quando falo ‘muito Portela’, me refiro à escola que o portelense gosta: desde a águia imponente até o luxo e esplendor do azul e branco vibrantes. O portelense valoriza essa tradição, e a Portela teve tudo isso em 1995. Além disso, a escola tinha o melhor samba do Carnaval, um samba de mestre Noca da Portela e seus parceiros Colombo e Gelson, interpretado de forma espetacular por Rixxa. A bateria, sob o comando do mestre Mug em seu primeiro ano à frente, deu um verdadeiro show. Você pode procurar defeitos nesse desfile, mas simplesmente não vai encontrar. Foi um Carnaval inesquecível, que deixou muitas lembranças boas e inspiradoras para a Portela”, relembra Scafura em entrevista ao CARNAVALESCO.
Ele destaca ainda a “seleção” de sambistas que fizeram parte daquele desfile: “Quando encontro personagens que ainda estão no nosso Carnaval – graças a Deus –, como o próprio Rixxa, Jerônimo, André Machado, Djalma e tantos outros que participaram ativamente daquele desfile, fico muito feliz. São memórias que servem sempre de inspiração para a Portela continuar fazendo Carnavais à altura de sua história e do espetáculo que a Sapucaí merece. Mesmo após 30 anos, esse desfile continua inesquecível no coração de cada portelense”, emociona-se.
O apogeu da ‘Certinha de Ramos’
Se a Portela vivia um renascimento em 1995, a Imperatriz Leopoldinense atravessava seu período mais glorioso e chegava à Sapucaí como grande favorita ao título. O enredo era mais um dos achados geniais de Rosa Magalhães. A escola de Ramos desfilava de maneira impecável, sem falhas visíveis, o que lhe rendeu o apelido de “Certinha de Ramos” – uma alcunha que, em um primeiro momento, era um elogio, mas que, anos depois, passou a incomodar a comunidade do Complexo do Alemão.
Atualmente diretor de Carnaval da Imperatriz, André Bonatte, que era ritmista em 1995, lembra que a fama de “certinha” começou a incomodar mais tarde:
“No começo, esse rótulo de escola ‘certinha’ nos enchia de orgulho. Mas, no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, ele passou a ser visto de forma pejorativa. Muitos associavam essa precisão a uma escola fria, sem sentimento, apenas cumprindo um protocolo. Isso virou quase um estigma do qual a Imperatriz teve dificuldade de se desvencilhar. Até hoje, tenho restrição a essa imagem da ‘certinha de Ramos’, da escola que desfila com o regulamento debaixo do braço. Parecia uma escola mecânica, preocupada apenas em seguir regras, sem emoção”, disse Bonatte ao CARNAVALESCO.
Mas, independente das críticas, a Imperatriz entrou na avenida determinada a confirmar seu favoritismo. O samba era espetacular e foi conduzido com maestria pela Swing da Leopoldina, que teve uma atuação brilhante sob o comando do mestre Beto.
Evolução tira o título da Portela e consagra a Imperatriz
Antes da apuração, a grande dúvida era: a Imperatriz seria penalizada por não ter desfilado com todas as alegorias previstas? Caso isso ocorresse, a Portela poderia conquistar o título. Mas, quando os envelopes foram abertos, o que se viu foi uma disputa emocionante entre a Majestade do Samba e a Rainha de Ramos.
O critério que acabou sendo determinante para o título foi Evolução. De acordo com o regulamento, a maior e a menor nota de cada quesito eram descartadas, e a Portela recebeu dois 9,5 nesse critério, o que comprometeu sua pontuação final.
A Imperatriz, por outro lado, teve apenas três notas abaixo de 10 em toda a apuração, e todas foram eliminadas pelo sistema de descarte. No placar final, a Imperatriz somou os 300 pontos máximos possíveis, contra 299,5 da Portela.
Uma disputa histórica, que permanece na memória de todos os amantes do Carnaval.