A Viradouro não tem medo de apostar no novo. Já tinha mostrado isso quando escolheu a “carta” para o carnaval de 2022. E reafirmou ao bancar o samba mais diferente do carnaval 2025. Esse é um dos muitos méritos da diretoria niteroiense – coragem para ousar.

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Foto: Allan Duffes/CARNAVALESCO

A disputa tinha boas opções de sambas mais tradicionais, mas a obra de Paulo César Feital, Inácio Rios, Marcio André Filho, Vaguinho, Chanel, Igor Federal e Vitor Lajas se destacou antes mesmo de ir para a quadra pela sua pegada vibrante e letra forte. É como se fosse mais um “ponto” para Malunguinho: foge completamente aos padrões melódicos do samba-enredo clássico e traz um sopro de novidade ao gênero.

O enredo “Malunguinho, o Mensageiro de Três Mundos”, do carnavalesco Tarcísio Zanon com sinopse do enredista João Gustavo Melo, revela mais um personagem da história preta brasileira desconhecido do grande público. João Batista era líder do quilombo do Catucá em Pernambuco, onde viviam os “Malungos”. Bravo guerreiro, enfrentava não só os ricos fazendeiros como também as tropas imperiais com a ajuda da força das matas. Ainda em vida “Malunguinho” teria se aproximado dos indígenas e do culto à Jurema onde mais tarde se transformou em entidade muito cultuada. Há dezenas de pontos dedicados a ele. Os “três mundos” do título são a mata, a Jurema e a encruzilhada, uma vez que ele posteriormente se associa com o Exu-trunqueiro.

O samba começa pela maneira como a entidade é evocada nos cultos da Jurema, através da fumaça dos cachimbos, conforme a sinopse do enredo conta logo na segunda linha “De longe ouvi me chamar… A fumaça me trouxe até aqui!”: “Acenda tudo que for de acender / Deixa a fumaça entrar”. Logo depois faz a saudação da entidade nos rituais “Sobô Nirê Mafá, Sobô Nirê!”, que está na primeira linha do texto escrito por João Gustavo Melo. Samba e enredo iniciam literalmente lado a lado.

Então o próprio Malunguinho vai contando sua história com um trecho em que exalta sua coragem e valentia na luta contra os opressores. “Evoco, desperto nação coroada / Não temo o inimigo / Galopo na estrada / A noite é abrigo / Transbordo a revolta dos mais oprimidos”. Esse verso, “transbordo a revolta”, é um primor poético.

Malunguinho transita entre os três mundos do enredo. Na estrofe seguinte ele se assume caboclo e depois faz a correlação entre o cachimbo de hoje e o facão que usava antes. Aqui vale destacar outro verso, “Pavor contra a tirania”, tradução inspirada que reafirma a bravura da personagem. “Eu sou caboclo da mata do Catucá! / Eu sou pavor contra a tirania! / Das matas, o Encantado / Cachimbo já foi facão amolado / Salve a raiz do Juremá!”.

O primeiro refrão exalta a Jurema, fala dos seus poderes de cura, das bebidas feitas a partir de sua seiva e da importância dela para Malunguinho. É mais um trecho do samba em que os autores alternam versos que têm mais espaço entre as palavras com outros em que a melodia acelera, apertando a métrica. É um dos recursos estéticos que marcam a diferença melódica da obra. “Ê, juremeiro! Curandeiro, ó! / Vinho da erva sagrada / Eu viro num gole só Catiço sustenta o zeloso guardião / Trago a força da Jurema / Não mexe comigo, não!”

Depois de passar pela mata e pela Jurema Malunguinho chega à encruzilhada. “Entre a vida e a morte, encantarias/ Nas veredas da encruza, proteção / O estandarte da sorte é quem me guia / Alumia minha procissão”. Atemporal, ele está presente nas lutas de seu povo até hoje. “Do parlamento das tramas / Para os quilombos modernos / A quem do mal se proclama / Levo do céu pro inferno”.

Seu toque nos rituais é o mesmo de Xangô, o Alujá, só que acelerado. Por isso o samba fala em “Kaô”. “Toca o alujá ligeiro, tem coco de gira pra ser invocado / Kaô, consagrado!” A parte final da letra cita “Reis Malunguinho”, como ele é chamado nos seus pontos, e volta a João Batista, guerreiro que enquanto estava encarnado, era um bravo guerreiro. “Reis Malunguinho, encarnado, pernambucano mensageiro bravio / O rei da mata que mata quem mata o Brasil!”. Um trecho de melodia maravilhosa por ser sinuosa, escorregadia e forte, tudo ao mesmo tempo. Uma pancada.

E vem o refrão com todo jeito de ponto, usando muito o recurso das repetições numa velocidade em que elas não ficam repetitivas, mas reafirmativas. É pulsante, pujante e cita Exu Trunqueiro e o Catimbó. É diferente também porque não tem exatamente um encerramento. Como a repetição do último verso vem um grau abaixo da fala anterior ela deixa o ciclo aberto seja para o reinício do próprio refrão ou para a cabeça do samba. Mais um detalhe genial. “A chave do cativeiro / Virado no Exu Trunqueiro / Viradouro é Catimbó! / Viradouro é Catimbó! / Eu tenho corpo fechado / Fechado, tenho meu corpo / Porque nunca ando só / (Porque nunca ando só!).

A Viradouro tem um samba que conta com perfeição seu enredo. Vai além da descrição dos setores, capta a alma do homenageado. Uma alma de valentia, acima de tudo. Tem tudo para atender às necessidades do desfile quanto a harmonia e evolução. E tem tudo para “transbordar” a avenida: dificilmente será esquecido. Daqui a vinte anos algum jovem de hoje em dia lembrará dele com nostalgia. Porque além disso tudo esta obra tem o que de mais especial um samba-enredo pode ter: originalidade. É único.