A Mocidade não vem de bons desfiles. Apesar do sucesso pré-carnavalesco do samba do Caju, a escola não aconteceu na avenida, o que refirmou uma crise de identidade. Para tentar resolver essa questão a diretoria trouxe de volta o último carnavalesco de destaque da verde-e-branco: Renato Lage – e sua parceira Marcia, que o acompanhou durante parte da sua primeira passagem na agremiação. Os dois apesentaram o enredo “Voltando para o futuro – Não há limites para sonhar” em que propõem uma reflexão à humanidade sobre o momento em que vivemos e busca inspiração em desfiles anteriores da própria Mocidade.
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A sinopse não é das mais fáceis de se interpretar, mas o samba-enredo ajuda muito a organizar as ideias, ou pelo menos assim espero (é preciso ver o casamento dele com a parte plástica). Ele constrói uma linha lógica que nos permite compreender os questionamentos do enredo, que pareciam vagos inicialmente. Méritos para Paulo César Feital, Cláudio Russo, Alex Saraiça, Denilson Rozario, Carlinhos Da Chácara, Marcelo Casanossa, Rogerinho, Nito De Souza, Dr. Castilho e Leo Peres.
É uma letra de vocabulário rebuscado, que traz uma interpretação bastante poética da sinopse desde os primeiros versos em que anuncia o passado da agremiação como a inspiração deste olhar para o futuro em meio à escuridão do momento. “A luz que nos chega da estrela primeira / Nascida do pó no Cruzeiro do Sul / Do plasma divino das mãos carpinteiras / Ressurge Candeia no breu nesse azul”.
O trecho seguinte já traz o primeiro questionamento sobre os rumos que a humanidade tem escolhido para si e questiona os rumos do uso da ciência. “Será que o limbo da imaginação perverte a inteligência? / O homem com sua ambição desconhece a razão, desatina a Ciência”.
E lança um olhar para como seria o carnaval perto do apocalipse, caso os rumos da evolução continuem como estão hoje. “Será que há de ter carnaval, sem minha cadência? / Com alas em tom digital no fim da existência / Me diz afinal quem há de arcar com as consequências?”. Estes dois grupos de versos passam ao largo de uma série de obras de ficção citadas na sinopse para construir tal cenário.
Aqui os autores começam a usar um recurso que marca esta obra, as citações a trechos de antigos sambas da Mocidade. Neste primeiro refrão eles relembram o famoso Ziriguidum 2001, do carnaval de 1985, no verso “escrever versos à luz do luar”. E reafirmam a ideia de reconstrução da escola presente desde os primeiros versos.
“Se a Mocidade sonhar / No infinito escrever versos a luz do luar, deixa! / Quando o futuro voltar / A juventude vai crer / Que toda estrela pode renascer”.
A segunda parte da sinopse aponta para os problemas ambientais trazidos pelo uso desenfreado da ciência como meio de acumular capital e ainda resvala na hipocrisia de quem diz defender a natureza, mas lucra com sua devastação. “O verde adoecido da esperança / Ofega sobre o leito da cobiça / Quem vive pelo preço da cobrança / Derrama sua lágrima postiça”
Nos versos que se seguem o samba faz alusão aos incêndios florestais que assolam não só o Brasil, mas todo o mundo e suas consequências. “Fogo matando a floresta / Bicho morrendo no cio / Febre no pouco que resta / Secam as águas do rio / E a vida vai vivendo por um fio”
Até que chega o ponto de virada da história. Com uma sequência de boas lembranças de antigos desfiles da Mocidade o samba injeta esperança no futuro. Os compositores foram muito felizes ao encaixarem referências de diferentes sambas dando a eles uma perfeita conexão de sentido, algo difícil de alcançar. Começa com o “Chuê, chuá”, de 91 – “Naveguei / No afã de me encontrar eu me emocionei”; passa pelo Grande Circo Místico, de 2002 – “Lembrei da corda bamba que atravessei”, pelo famoso “Vira, virou”, de 90 – “ São tantas as viradas desta vida”, brinca com “Criador e Criatura”, de 96 – “A mão que faz a bomba se arrepende, faz o samba e aprende” e termina com o desfile de 1997, cujo título do enredo está no último verso – “A se entregar de corpo e alma na avenida”.
O refrão final reafirma a ideia de um futuro melhor, com o céu clareando e o mago recriando a Mocidade. Mais uma vez a escola bate na tecla de uma necessidade de uma transformação interna e aposta em Renato para isso, ao olhar para o passado. “O céu vai clarear / Iluminar a zona oeste da cidade / E Deus vai desfilar / Pra ver o mago recriar a Mocidade”.
É um meta-enredo em que a Mocidade fala sobre ela mesma no presente, no passado e sobre sua esperança no futuro. Ao misturar sua própria história com o caos da humanidade que fez parte desta história, mas parece sem solução, acaba gerando dúvidas na interpretação de onde pretende chegar. Mas é carnaval e tudo é permitido.
O samba é muito bem construído em letra e melodia, que se encaixam perfeitamente para a transmissão dos diferentes momentos que apresenta. Há momentos mais sombrios, outros de esperança e aqueles em que há explosão de fé no futuro. E a música acompanha tudo isso perfeitamente. A questão é a comunicação com o público, um pouco dificultada por um texto que em alguns pontos soa pesado, com palavras pouco usadas no dia-a-dia dos componentes. Quase uma obra erudita dentro do que é o universo do samba-enredo. Como tudo acontece na hora do desfile, vamos esperar para ver como o samba que leva Deus para o desfile funciona na avenida.