Homenagear um compositor e cantor no carnaval sem citar as letras de suas músicas é uma tarefa rara e muito difícil. O grande público, muitas vezes fã do artista, normalmente espera cantar ou relembrar um pouco da obra dele na avenida. Neste caso falamos de Milton Nascimento, um dos gigantes da MPB. Há na memória coletiva uma infinidade de versos famosos que ele compôs ou cantou. Mas a proposta da Portela para este carnaval é fazer outro tipo de homenagem. O nome já diz: samba-enredo. A música deve ajudar a contar a história que está sendo mostrada. E a maneira encontrada pelos carnavalescos André Rodrigues e Antônio Gonzaga para celebrar Milton Nascimento não passa pelas músicas que marcaram sua trajetória.

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Foto: Allan Duffes/CARNAVALESCO

O enredo “Cantar será buscar o caminho que vai dar no sol – Uma homenagem a Milton Nascimento” é uma procissão do povo brasileiro partindo da Portela, em Madureira, até o interior de Minas Gerais – terra de Milton Nascimento. Neste caminho outras pessoas vão aderindo à jornada que vai desfilando a principal temática da obra de Milton, a vida do povo brasileiro. A história é dividida nas fases do dia – manhã, trade, noite, madrugada e o amanhecer. Cada faixa de tempo reflete um momento da obra do homenageado. Até que as pessoas o encontram ao amanhecer do dia seguinte para celebrá-lo.

O compositor Samir Trindade, que encabeça a parceria, falou ao podcast SAMBA LEAL que a proposta dos autores do samba era fazer um samba para Milton Nascimento e não “com ele”, ou seja: a Portela ofertando a sua própria arte sem “pegar carona” nas ideias de seu homenageado. Pode parecer uma posição presunçosa, ambiciosa, mas eles não compuseram uma música do “Clube da esquina” e sim um samba-enredo – coisa que conhecem bem – e dos bons.

Portela 2025: ouça a versão oficial do samba-enredo

Samir Trindade, Fabrício Sena, Brian Ramos, Paulo Lopita 77, Deiny Leite, Felipe Sena e JP Figueira venceram uma disputa acirrada com outras obras maravilhosas. E têm mérito pra isso. Levantaram a quadra e emocionaram muita gente. É um samba-enredo em sua essência, de letra muito inteligente e original, embalada por melodia valente e bonita. A gravação inicial dos compositores deixa essa impressão clara. Infelizmente a versão oficial optou pela “excelência” técnica em detrimento da emoção; além de algumas mudanças melódicas que tiraram um pouco da essência interpretativa da procissão. Quem conhece o samba pela versão oficial do álbum da LIESA pode achar que ele é frio, sem impacto. Mas não o é. Ou não deveria parecer ser.

Os primeiros versos já apresentam, com beleza, o início da história. É a Portela “concentrada” para iniciar a caminhada: “Manhã / Alvorada das nossas lembranças / Peito aberto, carrego esperança / Do altar de São Sebastião / Estou onde a mãe do ouro me afaga / E fiel abraçado à Águia / Vou partir em procissão”. Logo na primeira palavra o samba deixa claro a ideia da divisão da história a partir das fases do dia ao gritar ‘Manhã!”. Em seguida já dá uma passada nos sentimentos que Milton causa nos seus fãs ao falar das lembranças e dizer que carrega esperança. São Sebastião (Oxosse), Mãe do ouro (Oxum) – padroeiros da escola – e a Águia são citados para contextualizar a Portela como ponto de partida.

Vídeos: apresentação da Portela na Cidade do Samba para o Carnaval 2025

E a letra parte para a procissão lembrando a fé, tema recorrente das músicas de Milton, das amizades (outra característica de sua vida) das pessoas cantando suas músicas… “Na fé, que faz do artista entidade / E sagrada as amizades / Ardem vozes, mil tambores…”. Para retomar as imagens da procissão e pontar a chegada de outro momento, a tarde: “Nas mãos, girassóis na travessia / Minh’alma em cantoria / Vem a tarde, vão-se as dores”. Versos que resgatam a magia que a música de Milton proporciona a quem as admira.

Chegamos então ao refrão central que mantém a narrativa da caminhada entremeada às imagens, sensações e sentimentos causados pela obra do homenageado: “Nessa estrada, é sonho, é poeira / Passa o trem azul, sigo em paz Feito Rio… só me leva / Pra Deus filho de Maria / Tantos mares em um cais”. O terceiro verso deste refrão é o único do samba que, para mim, tem uma quebra de fluidez. O “Pra Deus filho de Maria” me soa um pouco apertado na melodia.

E o samba parte para um lindo crescimento na “segunda”, onde já aborda o sucesso do “Clube da esquina”, que aproximou pessoas de vários lugares do Brasil. “E as raízes se juntaram / Na esquina uniram a nação Venceram as lutas que travavam /Pra ver Zumbi no céu da canção”. E chega a noite, período da ditadura militar, em que o artista vira “farol” para quem vivia na escuridão. “Noite apaga o arrebol / Num milagre ser farol / E continuar…” para chegar ao verso em que o samba mais se aproxima da aura de Milton: “Quem acredita na vida Não deixa de amar”, com direito a uma repetição para reforçar a ideia e valorizar a emoção.

Na estrofe seguinte vem a reabertura política. “Dorme a maldade após o temporal / Na bandeira a liberdade, vem Bituca triunfal” e chega o final da procissão, marcando a essência da Portela, ao lembrar de uma das suas referências musicais, Candeia – trazendo a escola ao nível do homenageado. “Cheguei com meu povo, mesmo sentimento
Onde Candeia é chama / Brilha Milton Nascimento”.

Galeria de fotos: apresentação da Portela na Cidade do Samba

E vem o refrão, de muita garra, colocando Milton como Oxalá, o preto-rei ou “anjo negro”, mas acima de tudo na condição de sol que marca o amanhecer, fim da linha, e guia a Portela em seu desfile. “Iyá chamou Oxalá preto rei pra sambar / Iyá chamou Oxalá preto rei pra sambar / Anjo negro é o Sol que faz a Portela cantar / Anjo negro é o Sol na minha Portela”.

É um refrão ousado por não terminar exatamente com um rima, mas com uma variação do verso anterior. Também muito marcado em repetições de versos ou palavras, o que pode ajudar no canto dos componentes. Mas é antes de tudo um refrão aguerrido, pra puxar os brios da escola. Desde que seja entendido desta forma pela própria agremiação.

O encerramento do carnaval 2025 tem tudo para ser emocionante. A Majestade do Samba celebrando o povo brasileiro através de um gênio da raça. Com um enredo muito interessante e um samba muito bonito e emotivo. Espero que seja um grande desfile.