Enredo: “Clareou! Um novo dia sempre vai raiar”.

O Grêmio Recreativo Cultural Escola de Samba X-9 Paulistana se inspira nos versos da música “Clareou” para fazer do seu cinquentenário carnaval de 2025 um abraço em todas as pessoas que buscam um recomeço. Diante da epidemia de transtornos de saúde mental no Brasil e no mundo, vamos potencializar toda a alegria de um desfile de escola de samba para oferecer uma mensagem positiva àqueles que, no girar incessante da roda da vida, encontram-se num momento de queda. Cair é saber levantar. Mas ninguém levanta sozinho. E nós estaremos na avenida, cantando e sambando no asfalto, para celebrar o nosso próprio recomeço e inspirar o de tantas outras pessoas. Afinal, “pode a dor uma noite durar mas um novo dia sempre vai raiar”. Raiou para nós, há de raiar para você.

Cada xisnoveano que pisar no Sambódromo viverá uma nobre missão: levar alegria onde hoje só há tristeza; oferecer esperança onde só existe o medo; inspirar resiliência onde só há resignação. Eu sei que por vezes parece difícil acreditar numa vida melhor mas, como a música nos diz, “Pra tudo tem um jeito e se não teve jeito ainda não chegou ao fim”.

Eureka! Esse jogo ainda não acabou. Amparados pela fé, pela arte e pela ciência levaremos nossa mensagem. Durante todo o desfile, esses três pilares vão caminhar juntos na busca pelo recomeço. É hora de levantar! Levantar e mergulhar na magia infinita que o carnaval proporciona para redescobrir a vida. Encontrar o melhor de si e do mundo. A fase das trevas está acabando. “Você já sofreu demais. Agora chega!”.

Se “a vida é para quem sabe viver”, é hora de absorver os ensinamentos daqueles que melhor compreenderam essa arte. A filosofia dos povos baniwa, que formam uma comunidade indígena de ocupação concentrada sobretudo no noroeste da Amazônia, nos ensina que o bem viver se constitui a partir da harmonia entre os seres humanos e a natureza. Os baniwa aprendem a trabalhar juntos pelo bem-estar coletivo, num esforço permanente para que haja uma vida estável e confortável. Isso tudo sem perder de vista o esforço pela preservação das nossas riquezas naturais.

A ordem aqui é ouvir a Amazônia. “Amazônia mãe”, como cantamos certa vez nesta avenida. Naquela noite, inclusive, expusemos em destaque a vitória-régia, a mais amazônica de todas as plantas. Hoje, é ela quem vai nos oferecer mais uma lição fundamental: sua beleza singela sugere ser esta uma planta indefesa, mas a vitória-régia guarda dentro de si uma camada de espinhos que lhe garante proteção. Guarde, pois, essa lição: por dentro, somos muito mais fortes do que parecemos por fora.

Comunidades nativas enxergam nesta planta também um símbolo de renascimento. Criaram este simbolismo observando que o seu ciclo de vida dura apenas dois dias: no primeiro, sua flor desabrocha ao anoitecer; no segundo, após a polinização, ela submerge para formar o fruto cuja semente, algum tempo depois, vai se renovar para criar novas unidades da vitória-régia. A vida sempre continua. Às vezes é tempo de submergir; às vezes é tempo de florescer. Tempo de começo, tempo de recomeço.

Seguindo nossa viagem de renascimento, nos encontramos agora com as nossas origens como nação. Enxergamos assim a capacidade de resistir e recomeçar como um dom que o brasileiro transporta de geração em geração. Quando olhamos para o horror do período da escravidão, frequentemente pensamos nas agressões físicas que sustentaram por quase quatro séculos esse capítulo triste de nossa história, mas é preciso lembrar também que essa época está marcada por agressões psicológicas que entraram inclusive para a literatura médica da época: o “banzo” era a enfermidade psíquica que acometia milhares de homens e mulheres escravizados.

A origem da palavra “banzo”, de acordo com uma corrente de historiadores e estudiosos das línguas africanas, está relacionada à saudade que essas pessoas sentiam de suas casas. Para resistir ao “banzo” e recomeçar tão longe do seu lugar, sobretudo em condições tão adversas, foi preciso fazer – dentro do possível – do Brasil um novo lar. Para resistir, negros e negras adornavam a poesia da vida dura com melodias que até hoje reverberam em sambas – não só os sambas de enredo – e outros gêneros de raiz igualmente preta.

A arte preta se manifestou também em dança, batuque, capoeira e numa produção intelectual que se desenvolveu mesmo sem que houvesse uma igualdade de condições e oportunidades. Para tanto, as redes de afeto e proteção mútua criadas pelos escravizados e seus descendentes também cumpriram um papel fundamental. Os quilombos nasceram para agrupar forças. Foi assim que muitos se levantaram e muitas conquistas surgiram. Aquilombar, por aqui, sempre foi somar.

Exaltar essa mobilização e essa força criativa do povo preto brasileiro não é, de maneira nenhuma, normalizar essa sequência de agressões que exigiu tamanha resiliência. É, na verdade, atestar que para lutar era preciso estar vivo. E para estar vivo era preciso superar o banzo. Nos quilombos, força era uma corrente que se passava e se recebia de cada um dos seus irmãos na tentativa de provar que “nem sempre o jogo é assim”, cruel. Que jamais seja, então.

Pouco a pouco o desfile vai passando e a dispersão se aproxima trazendo com ela um retorno à vida real do dia-a-dia. Mas nada será mais como antes! “Um novo dia sempre vai raiar” e esse dia há de ser diferente! Não só levantaremos: permaneceremos de pé mesmo quando o mundo quiser nos levar ao chão. Como?

Antes de mais nada, é fundamental saber que procurar ajuda não é sinal de fraqueza. Pelo contrário, é sinal de força e coragem para dar a volta por cima. A cada ano que passa a ciência evolui mais e mais para qualificar cada vez melhor os profissionais que, com seu conhecimento, também estendem os seus braços para nos tirar do chão.

E que ninguém pense em colocar a fé e a ciência em lados opostos. Pelo contrário. Reerguer quem está caído é unir forças: a ciência é indispensável e a fé, seja ela qual for, também pode ser uma ferramenta essencial neste processo, sobretudo porque o que as religiões nos ensinam de mais bonito é justamente a disposição em auxiliar quem mais precisa de conforto. Não importa qual seja o seu Deus, “quem está com Ele nunca está só”.

Encerramos nosso desfile completando nossa rede de proteção em outras dimensões. Faz bem ter a certeza de que em algum lugar olham por nós divindades superiores – tenham elas o nome que tiverem em sua crença – e também nossos antepassados, que fazem falta aqui no nosso plano mas seguem vivos em nossas lembranças.

Neste meio século de samba, ganhei e perdi. Vivi quedas e ascensões. Mas nunca estive desamparado por quem me ama. Viro cinquentona me sentindo forte e esperançosa em passar nesse desfile uma mensagem que te fortaleça também.

Sou a X-9 Paulistana e te garanto: você não está sozinho. Vamos encerrar nosso desfile olhando para o céu porque dele virá o amanhã iluminado que decretará o fim de um tempo de escuridão. Este novo tempo chegará assim, de surpresa: “Quando menos esperar… Clareou!”.

Concepção: Mestre Adamastor, Amauri Santos e Leonardo Dahi
Pesquisa, desenvolvimento e texto: Amauri Santos e Leonardo Dahi

Os versos em negrito são extraídos da música “Clareou”, de Rodrigo Leite e Serginho Meriti: a trilha sonora que nos inspirou a fazer deste carnaval um abraço em quem precisa de conforto para recomeçar