Nos últimos anos, diversos amantes do carnaval mundo afora fizeram críticas ao método de julgamento da folia paulistana. O excesso de notas máximas, chamado de “chuva de dez”, tornava as apurações das escolas de samba de São Paulo monótonas em alguns quesitos. Isso tudo descontando, é claro, as discordâncias sobre determinadas notas – algo presente em concursos em toda a Terra. Os dois pontos de atrito, em alguns momentos, atingiam a mesma pessoa: Rafael Oliveira, conhecido como mestre Rafa.
Comandante da “Bateria com Identidade” desde 2014, o comandante dos ritmistas do Rosas de Ouro revelou, em entrevista ao CARNAVALESCO, um sentimento negativo em relação às notas atribuídas ao segmento da Roseira – a despeito dos diversos prêmios conquistados ao longo de uma década inteira.
Penalização única
Das cinquenta e seis notas do quesito Bateria na apuração do carnaval de São Paulo em 2023, apenas uma não foi dez. Eduardo Tullio, julgador do segundo módulo do Anhembi, concedeu um solitário 9.9 para a Bateria com Identidade. O desconto, como não poderia deixar de ser, deixou não apenas mestre Rafa um tanto quanto incrédulo. “Não é uma sensação ruim, dá uma sensação de não estarmos na mão de pessoas qualificadas. Essa é a verdade. Não sou eu, mestre Rafa, quem estou falando: tiveram reuniões com outros comandantes e outros três ou quatro mestres de bateria levantaram e falaram que não foi justo. Eles disseram que desfilaram catorze escolas no Grupo Especial e não é possível que só a minha bateria errou”, desabafou o profissional, que apresentou, junto à azul e rosa, o enredo “Kindala! Que o amanhã não seja só um ontem com um novo nome”.
A justificativa para o desconto na pontuação também foi rebatida pelo comandante dos ritmistas da Roseira. “No caso, não foi nem erro: ele nos despontuou falando da equalização. Só que há um áudio do jurado falando que não conseguia ouvir direito o agogô. Não tem essa de estar ou não ouvindo: tem que estar ouvindo e acabou. Errou o jurado, infelizmente. Vou caçar o jurado? Não, ele foi colocado ali e que tem que cuidar do e capacitar o jurado é quem fez a contratação”, disparou.
Ao realizar a apresentação para a segunda cabine de jurados, por sinal, o próprio Mestre Rafa sentiu algo estranho no ar. “Isso tira a cereja do bolo, porque foi um jurado que paramos na frente dele, apresentamos a bateria, viramos, abaixamos, fizemos tudo e ele mal nos olhou. Não sei qual é o tipo de instrução que ele recebe, mas ele não nos olhou. Ali eu já me senti desqualificado”, recordou-se.
Ao falar sobre um sentimento de injustiça, o comandante dos ritmistas voltou a criticar a situação. “Tínhamos seis bossas, a bateria que mais tinha bossas no carnaval paulistano, e todas grandes. Ao todo, duzentos e quarenta e poucos compassos de bossa, sendo que o regulamento pede dezesseis e um arranjo. Nós tínhamos o samba inteiro de bossas! Isso tirou a nossa cereja do bolo, mas quem passou vergonha foi quem cuida e o próprio jurado, infelizmente – repito que não é culpa dele. Várias baterias erraram, mas eu não sou jurado, sou mestre de bateria, não vou falar quais baterias erraram, mas todo mundo sabe quem errou e não foi despontuado na frente dos jurados. Nós, que não erramos e ousamos, tomamos desconto em equalização”, ratificou.
Motivação
Embora revele certo desprendimento em relação às notas, o que mais preocupa o ritmista-mor é como os comandados e a comunidade da Freguesia do Ó recebem os descontos. “Eu já estou preparado, mas… mesmo sabendo que a gente fez um bom trabalho, a minha rapazeada… qual o estímulo que eu tenho para passar para eles ensaiarem, sendo que fomos uma das três baterias que mais ensaiaram no carnaval (se não formos a que mais ensaiou), sempre fomos assim, sempre ensaiamos muito. Como eu vou pedir para ensaiaram sendo que o jurado errou?”, indagou.
Ao longo da entrevista, mestre Rafa aproveitou para questionar o conhecimento dos jurados do quesito em instrumentos musicais que não são eruditos. “Os jurados são maestros e etc, mas não são de cunho popular. Qualquer um daqueles jurados, se eu pedir para eles tocarem uma cuíca, uma caixa-de-guerra ou um repinique, eles não vão tocar porque não dominam o instrumento. Não basta ser só maestro. Pode até soar como polêmica, mas não é: é a verdade”, comentou.
Logo depois, ao novamente destacar que descontos não são novidades para ele, o comandante aproveitou para pontuar que ele também possui o domínio da música erudita, algo que não necessariamente é recíproco da parte do corpo de jurados. “Eu já estou preparado: eu venho de uma cultura que não sou de nota dez – inclusive, toco em orquestra também, sou músico formado e qualificado e já viajei muito, não sou apenas ritmista, toquei em várias bandas e orquestras”, revelou.
Como o próprio mestre Rafa destacou, decréscimos na pontuação não são novidade para a Bateria com Identidade. De 2014 para cá, os ritmistas da Freguesia do Ó gabaritaram o quesito “apenas” quatro vezes: 2015, 2017, 2019 e 2022.
Nada de mudanças
Apesar dos supracitados descontos, o comandante revelou que não pretende mudar o premiado estilo da Bateria com Identidade. “Em 2020, também fomos pontuados, sendo que ganhamos onze prêmios da imprensa em geral. As pessoas falavam que os jurados estavam loucos, e a voz do povo é a voz de Deus. Eu trabalho ainda mais, não estou nem aí. Não sou um cara inconsequente: se a escola me autorizar, vou fazer muito mais. A gente gosta disso, é a nossa marca”, comentou. Um dos prêmios no ano citado por ele, por sinal, foi o Estrela do Carnaval, de Melhor Bateria, concedido pelo CARNAVALESCO.
O tão falado novo regulamento para o carnaval 2024 também entrou em pauta em outra resposta de mestre Rafa. No caso, a parte musical como um todo terá mudanças. “Na minha cabeça o pensamento não mudou, mas eles estão julgando o carro de som, também. Para mim não muda nada, eu gosto de fazer as bossas: se eu puder fazer oito, sendo que eu fiz seis em 2023, eu vou fazer. Mas a escola começa a ver de outra forma. Eu já vejo até, como sei lá, perseguição, outras coisas”, pontuou, de maneira contundente.
Falando em regulamento…
O comandante ponderou que, para os ritmistas, nada muda. Há um quesito em especial, que não deixa de ter forte acompanhamento dos comandados de mestre Rafa, que merece especial atenção, na visão dele. “O regulamento, na parte de bateria, é o mesmo. Já em samba-enredo, que eles querem mudar por conta das notas dos últimas anos, eu não tenho como saber. Só vou saber depois. Só acho que tem que ter pessoas capacitadas. Eu não sei nem o que pensar. Entendo que a música não pode atravessar e nem embolar. Sendo bem sincero, não sigo muito o regulamento. Não é porque eu sou ‘mala’, mas a música é exata: você não pode começar a ouvir um partido dolente e, do nada, ela virar um rock”, ironizou.
Por fim, um protesto final. “Vamos trabalhando, só espero que a Liga-SP acerte porque o Rosas de Ouro foi muito penalizado onde não deveria ter sido. Todos estão vendo. Aí a escola cai e… está todo mundo vendo. Espero que arrume, que conserte e seja legal e o mais justo possível”, finalizou mestre Rafa.
O Rosas de Ouro ficou na décima segunda colocação do Grupo Especial de São Paulo, apenas uma posição à frente das duas que são rebaixadas para o Acesso I – apenas um décimo salvou a Roseira do descenso, que seria inédito na história da agremiação. A classificação em 2023 foi a pior desde 1975, quando a escola chegou ao pelotão de elite – menos de quatro anos depois da fundação.