A série “Barracões” hoje entra nas favelas do Brasil para conhecer as histórias que a malandragem conta através daquele que foi considerado “a voz dos morros” de sua época. Com o enredo “Da Silva, Bezerra. A Voz do Povo!”, os Acadêmicos do Tucuruvi celebrarão no Carnaval de 2023 a vida do sambista Bezerra da Silva através de sua obra, que denunciou décadas atrás problemas que até hoje enfrentam os brasileiros da periferia. Os carnavalescos Dione Leite e Yago Duarte conversaram com a equipe do site CARNAVALESCO sobre o tema escolhido e a preparação do desfile.
Escolha da homenagem a Bezerra da Silva
Após o encerramento da apuração do Carnaval de 2022, onde a Tucuruvi liderou por um longo período, mas acabou terminando em 11º lugar, o sentimento foi de frustração. Foi então que, de acordo com Dione, o diretor de Carnaval, Rodrigo Delduque, disse qual seria a linha do enredo a ser escolhido para o próximo ano.
“Esperávamos mais, mas aconteceram alguns problemas no nosso desfile e entendemos o resultado do Carnaval. Mas quando nós saímos da apuração, eu saí falando com o Rodrigo. A gente se olhou e o Rodrigo disse que esse ano o caminho seria uma homenagem. Nem sabíamos o que iria acontecer, se ficaríamos na escola, se a escola rescindiria o contrato, mas já sabíamos que seria o caminho de uma homenagem e daí começaram as nossas conversas”, declarou.
Apesar da proposta de realizar uma homenagem, a Tucuruvi decidiu seguir por uma linha de construção de enredos inspirados no mundo do samba. “Foi uma decisão da escola, da Direção de Carnaval, de permanecer nesse tipo de discurso, e cada vez mais aprofundar esses discursos. Teve essa decisão de se fazer uma homenagem a alguém do samba como se fosse, de certa forma, uma continuidade do discurso passado, então permanecemos com essa linha de raciocínio”, explicou Yago.
Já a escolha por homenagear Bezerra da Silva se deu principalmente pela oportunidade de ser a primeira escola a desenvolver um enredo em homenagem ao lendário sambista. “Na época tínhamos vários nomes que eu, Yago e o Rodrigo apresentávamos Nós tínhamos uns três nomes que estávamos bem contentes e que começamos as pesquisas. Veio um “start” de Bezerra da Silva porque tinha feito muito parte da minha infância, de um contexto, e era um sambista que ninguém tinha falado. Era difícil ter algum sambista que ninguém tivesse falado a respeito. Foi quase que inacreditável descobrir que Bezerra não tinha sido enredo de ninguém, e começamos a nos perguntar o porquê disso. A partir daí, se tornou uma ideia única de todos nós. Trabalhar essa ideia e descobrir os vieses dela foi o maior prazer desse trabalho que tivemos”, contou Dione.
Uma homenagem concebida de uma forma diferente: A pesquisa para o enredo
Enredos de homenagem a pessoas costumam seguir uma linha cronológica ao contar sobre a vida do homenageado, e para Rodrigo Delduque não poderia ser assim. Dione disse que era desejo de que a história de Bezerra da Silva fosse contada de maneira inovadora.
“Foi quando começou a vir a ideia do enredo, de atrelar a história do povo com a história do Bezerra da Silva. Fomos para a pesquisa sem saber para onde íamos, mas sabíamos que tínhamos que pesquisar. Descobrimos que existem milhares de defesas de TCC, de mestrados, documentos escritos por pessoas falando da vida de Bezerra da Silva. É quase que acadêmico, porque é muito material acadêmico sobre a história dele, e começamos a descobrir que tinham outros caminhos para se falar de Bezerra, e que quanto mais entrávamos na história de Bezerra, que não era só discografia, mas também os discursos dele, descobríamos o quanto Bezerra era parte do todo do povo, por isso que ele era considerado “porta-voz do povo”, e o quanto o povo era parte de toda a história profissional e pessoal da vida dele. Não tinha como não ser. Falar do povo através de Bezerra, porque Bezerra é o povo”, explicou.
‘Da Silva, Bezerra’, por Rodrigo Delduque
Ao longo da entrevista não foram poucos os momentos em que os carnavalescos exaltaram o papel de liderança de Rodrigo Delduque para que as engrenagens da concepção do enredo se encaixassem. Suas sugestões certeiras ajudaram os artistas a definirem a linha pela qual a narrativa seguiria. De acordo com Dione, foi de Rodrigo a ideia da desconstrução poética do nome de Bezerra da Silva, alçado de um simples homem a sinônimo da essência do povo periférico.
“Veio então a ideia dos “Da Silvas”, esses “Da Silva brasileiros”. E por que Da Silva? Se você tem boleto para pagar, você é Da Silva. Se você tem que pegar condução cheia para trabalhar de manhã, você é Da Silva. Se você conta moedas para colocar o pão na sua mesa, você é um Da Silva. Se você, no final do mês, estica tudo que dá e mesmo assim não consegue fechar suas contas, você é um Da Silva. Esse personagem “Da Silva” nada mais é do que todos nós. Não é uma questão de sobrenome, é uma questão de todos aqueles que são verdadeiramente brasileiros que lutam diariamente, principalmente para sobreviver, ou serem reconhecidos ou terem lugar de fala na sociedade, que é muito Bezerra da Silva. Aí que vem a ideia genial do Rodrigo, nosso vice-presidente, que chega para nós e diz: “Por que não colocar Da Silva antes de Bezerra?”. Aí que enredo muda de contexto, foi o que deu o “start”, o que abriu a escrita da sinopse. Dali a sinopse foi, e em quatro dias veio a sinopse pronta. Aquilo foi realmente um gatilho para podermos mergulhar nesse universo. Era um problema de simples troca de palavra. Aí a gente descobre o quanto Bezerra da Silva é do povo e o povo é dele”, declarou.
Bezerra como sinônimo de povo: A construção do enredo
A ligação que Bezerra da Silva possuía com a favela inspirou o artista a conceber o seu legado artístico como é conhecido pela maioria das pessoas. Em uma época cujo poder de comunicação em massa estava ao alcance de poucos, era preciso ser criativo para alguém se fazer ouvir. Bezerra soube fazer isso de uma forma que só nos dias de hoje, graças principalmente à internet, os moradores da periferia têm mais condições de ter sucesso.
“Não existe o personagem Bezerra da Silva, o ser humano Bezerra da Silva, separado do povo. É uma coisa só. Era impressionante o poder que ele tinha com as pessoas que moravam na favela, as pessoas que eram sofridas, abandonada na sociedade, porque era isso que a sociedade queria na época. Estamos falando dos Anos 1940, 50, 60, e é isso que a sociedade até hoje deseja para quem mora na periferia. Se não tratarmos nada com hipocrisia e pôr “na lata”, como o nosso samba diz, é sobre isso que falamos. É sobre esse descaso que a sociedade brasileira tem com quem mora na periferia. Só que hoje mudou. Quem dita a regra na moda, na dança, na música, sabemos que é a periferia. Esse enredo tem esse papel fundamental de exaltar, de defender, de organizar a nossa sociedade da favela, da periferia, porque todo aquele que, mesmo que more em um bairro no centro da cidade, mas que considera um “Da Silva” porque sabe de onde veio. Eu hoje não moro na periferia, mas é de lá que eu vim. Eu vim da favela, e tenho muito orgulho disso”, disse Dione.
Yago Duarte define a construção do enredo como uma homenagem mútua de Bezerra da Silva e do próprio povo brasileiro. “Nosso enredo é basicamente uma citação de Bezerra da Silva. Uma homenagem ao povo brasileiro através dele mesmo, que era o porta-voz desse povo. A gente não fala que ele nasceu ou morreu, cresceu, dentre outras coisas, não temos tempo no enredo. Estamos contando uma história, dissertando essa história do povo brasileiro através da história dele. E dentro de todos esses fatos, costumes, todas essas atitudes, características, são atemporais, porque ele contava lá atrás coisas que até hoje ainda acontecem, seja em aspectos bons, seja aspectos ruins. Ele apontava o dedo, botava o dedo na ferida, mas em contrapartida ele também falava daquele povo com muito orgulho, porque sabe da honestidade desse povo que trabalha e dá um duro danado para sobreviver. Realmente é atemporal essa citação de Bezerra da Silva”, explicou.
Das ruas deu voz às ruas: As curiosidades da pesquisa do enredo
Quem conhece a obra de Bezerra da Silva de maneira superficial nos dias de hoje pode deduzir que os sambas tinham um teor voltado ao bom humor e descontração. Dione, porém, definiu o teor da obra do sambista como sarcástico, utilizando dessa veia para tornar aceitável o inaceitável pela sociedade da época. A resistência à sua música fez com que Bezerra morasse por anos nas ruas de Copacabana até o momento em que foi recolhido e salvo por um terreiro de umbanda. Graças à religião, o Da Silva descobriu seus caminhos.
“O que mais me prende nisso, hoje olhando, sabendo o que passou, já que falamos desse enredo já há muito tempo, acho que é o poder de comunicação do cara, que é impressionante. Acho que é você doar sua vida para que seja a vida do outro. Bezerra sempre falou que ele não era um militante, que ele não militava nada. Ele não estava fazendo discursos programados de defesas, de direitos. Não, ele nunca falou isso, mas o papo dele era denunciar tanto de quem morava lá dentro quanto de quem morava lá fora. De alguma forma, eu encontro dentro das composições dele falas extremamente importantes para a sociedade. Se você tirar o “engraçado”, ler a composição e não escutar, ela é séria demais. Quem escrevia não era ele. O compositor dele era o cara que morava no morro. Ele escutava e pegava a composição de um cara, o cara gravava e ele levava, ele voltava com o dinheiro e o cara não acreditava que ele estava ganhando dinheiro com aquilo. É um poder que ele tinha”, explicou.
Yago contou que o que mais o fascinou durante as pesquisas para a sinopse foi ver a capacidade de Bezerra da Silva de transformar o cotidiano relatado pelas pessoas da periferia em obras de grande popularidade.
“Ele era muito entendido de música, e ele era multinstrumentista. Ele conseguia trazer aqueles depoimentos das pessoas, donos de bares, lixeiros, mecânicos, e transformava tudo aquilo em música. Essas músicas contam o cotidiano, e acho que isso que é uma das coisas mais fascinantes em Bezerra. Era uma missão dele. Era algo sobrenatural. Foi na casa de umbanda, onde ele foi acolhido, que ele seguiu esse caminho. Esse direcionamento foi feito por entidades. A gente cita o Pai Anacleto e a Vovó Catarina, que ele também citou em algumas músicas, e eles foram decisivos nesse caminho dele na música, nesse sucesso dele. Ele não desistiu porque ele teve essa ajuda espiritual. Veio de um outro plano. Esse dom dele, esse conhecimento dele, só sobrenaturalmente para explicar. Da origem dele por si só, não teria muito, não havia muita teoria ali, mas ele teve esse direcionamento, teve esse caminho que foi dado”, declarou.
‘Alô, malandragem! Otário não entra aqui!’
O samba da Tucuruvi possui na parte final da letra versos impactantes, com uso de palavras pesadas para se referir a situação vivida até hoje pelos excluídos da sociedade. Resume em música um desabafo que as pessoas indignadas com um contexto social que por décadas não se resolve. Dione é uma dessas pessoas, e reafirmou isso para falar do desfecho do enredo da Tucuruvi.
“Eu acho que uma coisa que é muito louca disso, porque antigamente o marginalizar era mais direto, era mais apontado. Hoje por causa das mídias sociais, da internet, as coisas mudaram na comunicação de todo mundo, que é eficiente e muito rápida para tudo acontecer. Hoje virou moda. A pandemia ensinou muita gente, graças a Deus, a participar, de ir pra rua dar comida, cesta básica, bábábá, bébébé. Só que essa mesma pessoa que vai lá e que posta essa foto, fazendo a tal ação social, é a mesma que está passando na rua fazendo de invisíveis os irmãos dela embaixo de viaduto. Esse “Um monte de dedos de seta, canalhas que a pátria pariu”, entendeu? “Alo malandragem, otário não entra aqui” é porque não tem que entrar otário no morro. É isso, é sério isso daí. Se nós tirarmos a parte bonita, a parte da poesia, estamos falando de coisa muito séria e que faz sentido só para quem entende e vive na pele todos os dias no Brasil o que é o descaso, o que é muito triste de se falar”, desabafou.
O samba tem elementos característicos das próprias obras de Bezerra da Silva. De acordo com Yago, para cada pessoa que ouvir e ler a letra, a música é capaz de impactar de uma forma diferente a depender do contexto social em que vive, e tem como objetivo conscientizar aqueles que não entendem as dificuldades vividas pelo povo periférico.
“Para cada bolha. Tem se falado muito em bolha, que cada um vive na sua bolha. Quando essa bolha é estourada, as pessoas ficam em choque. É diferente de um governante dizer que não há fome no Brasil. Não sei em que bolha é essa que ele vivia, até agora eu não entendo, mas existe fome no Brasil e está bem pior que há alguns anos. O papel do enredo é estourar a bolha. Era o papel de Bezerra da Silva e é o papel do Carnaval, da escola de samba. Estourar essas bolhas e contar com um pouco de esporro como que está o país”, explicou.
Conheça o desfile dos Acadêmicos do Tucuruvi
“Acho que no conjunto de fantasias o que podem esperar é um desfile plástico totalmente calculado, extremamente técnico. Nós elevamos a altura das nossas fantasias. Elas estão mais altas e leves, para que o componente possa evoluir. Reduzimos os riscos de margens de erro de materiais que poderiam cair. É esse tipo de estudo que nós fizemos para que pudéssemos chegar nesse Carnaval com uma tranquilidade. Pode dar tudo errado? Pode, mas se der tudo certo terão que engolir a Tucuruvi”.
Setor 1: “Pelas alegorias, a gente abre o desfile trazendo o batuque como a essência do povo brasileiro, e o surgimento de Bezerra da Silva como músico. Viremos com essa pegada de essência da ancestralidade, abriremos o desfile dessa forma. Posicionando bastante o símbolo da escola, queremos sempre posicionar bastante a marca da escola para esse momento. Temos sempre falado muito de mudança de mentalidade, de reafirmação e resgate da Tucuruvi como instituição cultural e social, então abrimos o desfile posicionando bem a marca, e trazendo esse contexto de ancestralidade e o batuque como a alma do povo brasileiro”.
Setor 2: “A segunda alegoria, a gente aborda a religiosidade, que é um aspecto muito importante dos “Da Silvas” brasileiros, assim como o próprio Bezerra da Silva, que era da umbanda. Trazemos essa questão da energia sobrenatural que sempre esteve próxima do povo brasileiro e de Bezerra independente de qual religião seja. Abordamos a umbanda porque era a religião dele”.
Setor 3: “Na terceira, trazemos a musicalidade no que diz respeito da valorização do produto nacional. Fazemos uma brincadeira com a capa de um disco, “Os Três Malandros”, uma paródia que eles fizeram de três artistas internacionais igual muita gente da alta sociedade sempre quis comprar o que é de fora e nunca valorizou o que é nosso. Trazemos essa contrapartida, o que é nosso tem o seu valor”.
Setor 4: “A última alegoria nós trazemos a favela como um lugar de orgulho, de força, de respeito, de união. De miscigenação e de mistura, que era aquilo que Bezerra da Silva contava. Trazemos esse orgulho de ser favelado. Com todo o respeito à palavra, nós desmistificamos isso. Reafirmamos que ser favelado não é um aspecto ruim. Tem gente honesta, tem gente que trabalha, que se esforça, que dá certo na vida seja qual for a área de atuação profissional dessas pessoas, mas elas dão muito certo mesmo sendo dali, o que é muito mal visto pela sociedade de fora, mas eles são felizes ali. Fechamos a escola com uma grande favela. Uma favela orgulhosa, feliz de ser favelada”.
Ficha técnica
Enredo: “Da Silva, Bezerra. A Voz do Povo!”
Alas: 17
Alegorias: 4
Componentes: 1900
Posição de desfile: Segunda escola a desfilar no sábado, 18 de fevereiro de 2023, pelo Grupo Especial